Confissões

A imagem dos personagens interpretados por Jack Nicholson há muito tempo me remota a um homem engraçado mas grosseiro, daqueles que se desliga dos valores morais facilmente e que sempre se mete em encrencas. Sabe aqueles personagens que querem fazer justiça com as próprias mãos e tirar vantagens dos outros? Pois é, sempre liguei Nicholson a eles.

 Bom, tudo isso caiu por terra hoje, quando vi o filme “ As confissões de Schmidt” de 2002, dirigido por Alexander Payne. Depois que o filme acabou fiquei me perguntando inclusive porque não o tinha visto antes. Acontece que me emocionei e muito, porque as reflexões sugeridas pelas vivências dos personagens não estão nem um pouco longe da realidade.

 A história é muito simples: Warren Schmidt é um homem de 66 anos que recentemente se aposentou. Sua rotina ainda possui resquícios da vida de administrador. Com tamanha dificuldade em entender que não está mais trabalhando, volta algumas vezes ao serviço para ver se está tudo dando certo e se estão seguindo as dicas que deixou. Um dia, visita sua antiga sala e percebe que já foi ocupada. Quando sai do edifício vê suas caixas jogadas no lixo. Como um choque de realidade entende que as coisas a partir daquele momento precisam mudar.

 Em casa, zapeando pela TV sua atenção é presa por uma propaganda. Imagens de crianças famintas da África pedindo por auxílio. “Adote uma criança por vinte e dois dólares ao mês, setenta e três centavos por dia”.  O senhor então, decide  adotá-lo. a Instituição envia fotos da criança e pede que envie uma carta, contando sobre a sua vida. É nesse momento que começa as confissões de Schmidt. Em princípio ele começa contanto da sua carreira e depois vai detalhando a sua vida pessoal: o carinho que sente pela filha única, a relação desgastada com a mulher (de quem não aguenta mais o cheiro e as manias de interrompê-lo enquanto fala).

 Quando vai aos correios enviar a carta, sua mulher está limpando o chão. Quando retorna, ela está morta. Triste, Schmidt se dá conta que agora está sozinho. Ele começa a perceber que as reclamações que fizera sobre a mulher na carta não chegavam nem perto do amor que sentia por ela. Sua morte provocou a visita da sua filha (que quase não ia aquela casa). Descobrimos então uma distância entre os dois, apesar do carinho enorme (e das tentativas de aproximação do pai para com a filha), seus questionamentos são por exemplo: “Porque você comprou o caixão mais barato para ela?”

 A filha: Jeannie (Hope Davis) se vai e Schmidt se vê novamente sozinho, junto com os questionamentos sobre o seu passado e sobre o seu futuro. Diante dos acontecimentos repentinos, decide realizar uma jornada rumo a Nebraska (no trailer que ele e a mulher compraram) para ajudar no casamento da filha com Randall (Dermot Mulroney), um vendedor de camas d’água. No caminho ele se depara com pessoas e situações que o faz refletir sobre a vida, sobre o casamento, sobre os seus desejos. – Esqueci de comentar que o filme é um roadmovie.

 Não queria que o post fosse tão descritivo, mas ainda não consigo fugir muito disso. De todos os questionamentos feitos por Schmidt, um deles me pareceu familiar (inclusive há um texto de Martha Medeiros sobre isso). O personagem fala com o garoto africano através das cartas que não sabe até quando estará vivo: “pode ser daqui há vinte anos, ou daqui a um dia”. O fato é que seremos vivos até que se lembrem de nós. Pode ser através dos nossos filhos, dos nossos netos ou amigos. Enquanto somos lembrados estaremos vivos, depois desaparecemos do mundo. Quem irá comentar dos nossos feitos, das nossas manias? Só quem nos conhece ou, quem se lembra de nós.

 Revendo fotos antigas, se lembra dos seus desejos, dos seus sonhos: quando estava na faculdade, queria mudar o mundo ou pelo menos ser alguém importante. Mas quando se casou e teve uma filha percebeu que a realidade é muito mais consistente: “não consegui mudar o mundo, nem a minha vida”. A viagem que ele realiza é um “fazer as pazes” com seu passado. Ele entende que atrás daquele bom homem, que aceita e que diz sim para tudo, há muito mais. Há raiva, há tristezas, arrependimentos. Sentimentos comuns a qualquer ser humano. O filme simplesmente é lindo, é válido e deve ser visto mais de uma vez.

O que fizemos de nós?

 

Comecei a ler o segundo livro com menos entusiasmo do que pelo primeiro mas fui sendo cativada mais uma vez pela capacidade narrativa de Zuenir Ventura. O segundo livro “1968, O que fizemos de nós” só perdeu um pouco do meu interesse por causa de algumas entrevistas. O fato é que me surpreendi positivamente (mais uma vez), não há nada de pedante em nenhuma das afirmações, uma lição jornalística: a importância das entrevistas.

Gosto principalmente da primeira parte e de suas respectivas divisões, os ‘reflexos do baile distante, ‘a falta de bússola – enfim, são fantásticas. Esse balanço que o autor faz, mostra que melhoramos em muitas coisas e que ainda estamos em dívida com muitas outras. O que mais me agrada é pensar que a reflexão do autor sobre a “nova geração” ou a “geração dos netos de 68” é justamente sobre a minha geração. Me identifiquei em diversos relatos que ele realiza.

Zuenir Ventura começa o livro conversando com as mulheres que em apoio (e também influenciadas) pelos movimentos de 68, se separaram dos maridos e foram a luta (cada uma a sua forma). Hoje reconhecem que aquela época refletiu diretamente no comportamento das suas netas, nas suas formas de vestir e de conversar. A crítica maior sem dúvidas é sobre a internet, para elas, um processo de alienação.

De fato, o mundo digitalizado trouxe vantagens em relação a 68. A comunicação rápida, o número de informações cada vez maior… mas que transformou as relações pessoais: “Ficam horas no MSN”, como diria Maria Lúcia Dahl. E realmente ficamos. As redes sociais se tornaram tão comuns que são um bem (ou mal?) necessário. No meu caso: pensei inúmeras vezes em apagar a minha conta no Facebook, mas como? Faço trabalhos acadêmicos, combino horários, troco informações, marco encontros.

Meu capítulo preferido sem duvidas é: “Sexo, drogas e rave”. Zuenir trabalha muito bem com esses conceitos, deixando claro suas diferenças entre 2008 e 1968. Gosto principalmente das análises que ele faz sobre o sexo nos dias de hoje, me fez entender muito do porque agimos assim: sim, somos uma geração que tem medo de fazer sexo e porque? Por causa da AIDS. Soa até engraçado quando analisam o “ficar” da nossa geração. “Eles se beijam, beijam e não fazem nada” – ou seja, não chegam nos finalmente.

A AIDS (a concepção, o medo, o terror à doença) veio para limitar essas ideia de amor livre. Sexo só se for seguro, com camisinha. Na década de 1980 não se entendia muito sobre a doença (aliás, acho mesmo que evoluímos pouco, mas pelo menos nos livramos daquela ideia de: câncer gay). O beijo, como explica Zuenir era apenas a preliminar para o contato carnal.

Outro momento interessante do livro é a descrição que ele faz das raves, das comparações com o Festival de Woodstock, das músicas e principalmente dos participantes da festa com pirulitos na boca. Alguns chupam pirulito por causa das drogas, para não trincar os dentes. Outros, chupam porque gostam de bancar a ideia, de fingir. Em falar em drogas, essa foi uma das heranças malditas de 1968, das suas relações com a criminalidade e das suas divergências em relação a liberação ou não.

Bom…. e as listas? Bacana demais, ele faz uma separação do que acabou e do que não acabou com 1968. O que não acabou? Nelson Rodrigues, Pilula Anticoncepcional, capitalismo, maconha, sonho, MPB…. O que terminou? Comunismo, Transar sem camisinha, cabelo comprido, palavrão. O palavrão ele mesmo classifica: “não sumiu mas saiu de moda”.

A melhor entrevista, sem dúvidas é com José Dirceu, que vive reafirmando a sua inocência. Em 2008 havia ainda uma especulação sobre o mensalão, nada como o que vivemos hoje: o julgamento. Na verdade é muito bom ver a perspectivas dos personagens e de como estão agora: Caetano Veloso, Heloisa Buarque de Hollanda, César Benjamim, etc…