-Cuidado com Spoilers!

Baseada em uma peça homônima de Robert Thomas – escritor famoso no teatro popular dos anos 70, a história se passa na década de 1950, em uma residência francesa, onde uma família se reúne para comemorar o Natal. A tempestade de neve que cai na cidade impede que as moradoras saiam. Isoladas, as oito mulheres se vêem envolvidas em um mistério, já que o único homem da casa, Marcel, é assassinado. Cada uma delas tem suas razões para matar Marcel e por isso, buscam pistas e trocam acusações. Tem-se aí o início de um longo dia de investigação que faz com que muitos segredos sejam revelados.
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Observa-se desde o início do filme, nos diversos diálogos entre as personagens, que a figura masculina de Marcel apesar de se mostrar praticamente ausente (já que aparece em duas cenas, sem mostrar o rosto e sem falas), serve como uma referência e encontra-se presente no discurso, nas reflexões e nas imagens construídas nos diálogos. Em 8 Mulheres a figura masculina é um signo e um significante. Para compreender melhor o conceito de signo, Santaella explica que:
O signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo a uma certa capacidade. (SANTAELLA, p.58, 1983)
O signo faz parte de um processo de comunicação já que permite transmitir informações. Uma mensagem, por exemplo, possui um conjunto de signos e segundo Santaella (1983, p.59) “a relação de representação que o signo mantém com o seu objeto, produz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro.”
As produções cinematográficas possuem grande potencialidade ao transmitir uma mensagem ao telespectador e podem fazê-lo através da aproximação da realidade do receptor. Segundo Lotman (1978), no cinema, quanto maior for a analogia entre a arte e a vida e a sua semelhança, maior e mais imediata será a recepção por parte do espectador. No caso de 8 mulheres, a obra é uma descrição de um mundo fantástico e por isso, o diretor permite-se abusar de cenários teatrais.
O HOMEM
Há quem estabeleça uma ligação entre o filme de Ozon com “The Women” (de George Cukor, 1933) e com os mistérios de Agatha Christie. Na verdade, cada personagem, representado por carismáticas e populares atrizes francesas (entre elas Catherine Deneuve, Isabelle Huppert e Fanny Ardant), possui uma relação complicada com Marcel que alimenta o confronto entre elas.
No entanto, como o personagem não possui falas nem rosto, é possível dizer que sua figura é praticamente construída através do discurso de cada mulher. Suas características são evocadas por meio de histórias que Augustine (cunhada, apaixonada por Marcel) conta, por casos do passado que Piarrete (irmã de Marcel) relembra ou por presentes caros que Gaby (mulher de Marcel) exibe.
A figura do homem é um signo ideológico que reflete a realidade de todas as personagens: uma mulher apaixonada pelo marido da irmã, uma mulher que engravidou do próprio padrasto, uma filha que ama o pai, uma mulher que chantageia o irmão para conseguir dinheiro, uma mulher que decide abandonar o marido, duas empregadas que odeiam o chefe e uma senhora que precisa que sua filha continue casada para manter seu padrão social.
O personagem de Marcel (e o símbolo que ele representa na construção da trama) cumpre diversas funções, ele é marido, irmão, chefe e pai, sem que seja necessário defini-lo como um homem bom ou ruim, afinal, uma delas (ou todas) está mentindo. Marcel foi assassinado com uma faca nas costas e não é possível ouvir sua versão da história. O mistério em relação a sua personalidade fica mais forte através da linguagem de cada mulher utiliza. Vale lembrar que cada uma delas possui um quadro musical dentro da trama e todas as músicas representam o que cada mulher sente em relação aquele homem.
Sua figura representa certa fragilidade afinal, nas duas cenas que aparece, apesar de estar de costas, está visivelmente triste e cansado. E em uma delas, o homem tenta se expressar, porém sua mulher não o escuta. O personagem não tem voz, não tem rosto e mesmo assim, assume uma posição crucial dentro da trama, isso porque as mulheres o caracterizam com tal importância.
O FIGURINO E AS CORES
“Porque Augustine usa uma roupa marrom e esses óculos com lentes escondendo aqueles olhos azuis tão bonitos?”, pergunta Piarrete em um dos momentos do filme. Se François Ozon fosse responder, provavelmente diria que a roupa de cada personagem é um reflexo de suas personalidades. No caso de Augustine, por exemplo, que é uma das personagens mais caricatas da trama, o seu vestuário exprime toda a sua excentricidade. Ela é uma mulher frívola, hipocondríaca e solteirona.
Um de seus momentos mais marcantes é quando descobrem o amor secreto que nutria por Marcel. Augustine resolve então tirar toda aquele vestuário e passa a vestir roupas tão bonitas quanto as das outras personagens, além disso, solta dos cabelos, abandona os óculos e passa a usar maquiagem. Nesse caso, a o vestido era apenas um signo representando o seu objeto.
Tanto os figurinos, quanto os cenários, são marcados por cores fortes. Percebe-se a predominância de tons vermelhos, azuis e amarelos. Em determinadas cenas a presença da iluminação determina e nos indica sensações. Quando Gaby e Pierrete discutem na sala, começam a lutar fisicamente e caem sobre um enorme tapete vermelho, o cenário fica mais escuro, a música até então agitada se acalma, e as mulheres se beijam. No momento em que as outras mulheres que estavam rondando a casa em busca de uma saída chegam, a iluminação do ambiente volta a ficar mais clara.
As sombras que acompanham os corpos de Gaby e Piarrete, em contraste com a neve que cai sobre a janela, sugerem certo erotismo na cena que se confirma com o beijo. Piarrete, que usa um vestido vermelho é uma prostituta que mantinha uma relação secreta com a empregada da casa do irmão (Marcel) e Gaby, que usa um vestido azul é a mulher de Marcel. Desde o início do filme, as duas possuem uma relação de rivalidade.
Em análise de secundidade, o sentimento (ou a impressão) em relação a esta cena pode variar de pessoa para pessoa, criando ou não um laço de identificação com os personagens que dialogam. O fato é que esta cena contou com um grande trabalho do diretor, dos produtores e das atrizes, que se dedicaram a criar elementos que envolvessem o telespectador, principalmente como explica Ozon, através de inserções musicais mais fortes
AS MÚSICAS
Cada uma das oito mulheres da trama possuem uma cena musical. Todas as músicas têm uma ligação com o relacionamento com Marcel. A música na trama se transforma em um instrumento para dar significado às emoções que as mulheres sentem no momento e é utilizada como uma linguagem que permite uma interação entre as personagens e os telespectadores, afinal, todas elas encaram as câmeras, como se cantassem diretamente para o público.
Além disso, a ambientação de cada cena é crucial para que o receptor possa estabelecer uma interpretação do que elas querem dizer. O cenário, as cores e a iluminação enriquecem o trabalho de cada atriz e permite que interajam entre si. Em todos os momentos musicais, as mulheres cantam ou são assistidas pelas outras.


Toi Jamais: A música interpretada por Catherine Deneuve demonstra a infelicidade de Gaby (mulher de Marcel) em relação ao seu casamento. Gaby, no final da trama confessa que pretendia abandonar o marido para viver com outro homem.
Car homme, Para o homem
Tu n’es qu’un homme Você é um homem
Comme les autres À semelhança de outros
Je le sais Eu sei
Tu es mon homme Você é meu homem
Je te pardonne Eu te perdôo
Et toi jamais E você nunca
Message Personnel:
A música interpretada por Isabelle Huppert exprime o desejo contido de Augustine em relação a Marcel. Neste momento da trama, a personagem confessa que ele é sua paixão há muitos anos, no entanto, ela não tinha como dizer, afinal era sustentada por sua irmã e tinha que cuidar de sua mãe.
Et il y a des mots que je ne dirai pas E há palavras que não digo
Tous ces mots qui font peur quand ils ne font pas rire
Todas essas palavras estão com medo quando não rir
Qui sont dans trop de films, de chansons et de livres
Quem está em muitos filmes, músicas e livros
Je voudrais vous les dire Eu diria a você
Et je voudrais les vivre E eu quero viver
Je ne le ferai pas, Eu não vou,
Je veux, je ne peux pas Eu quero, eu não posso
Je suis seule à crever, et je sais où vous êtes
Estou morrendo sozinho, e eu sei onde você está
SIGNOS
Para facilitar a interpretação dos signos disponíveis no filme, é necessário ter conhecimento sobre os três conceitos abaixo. De acordo com SANTOS:
“Peirce desenvolveu a semiótica, que para ele é a mesma coisa que lógica, ou a ‘ciência das leis necessárias gerais dos signos e, especialmente dos símbolos’, num nível de abrangência muito grande. Ele formulou uma fenomenologia com base em três categorias. “Analiso a experiência, que é a resultante cognitiva de nossas vidas, e nela encontro três elementos (PEICE, CP. 84). Fenômeno, para ele é tudo que aparece para nos em todos os momentos de nossa vida”. (SANTOS, p. 1)
Primeiridade: é a categoria do ser, da pura qualidade e está relacionada com o presente absoluto, com aqui e agora. “(…) e aquilo que é sem reverência a qualquer outra coisa dentro ou fora dele” (PEIRCE, CP 85). Ele a denomina também de oriência. “O mundo está cheio deste elemento de originalidade irresponsável, livre”.
Secundidade: Categoria do existir, do acaso, da “força bruta”, da ação do passado sobre o presente. É uma categoria binária, também chamada de obsistência e consistirá na ausência de qualquer razão, regularidade ou norma. “O mercador das ‘Mil e Uma Noites’ jogou fora um caroço de tâmara que feriu o olho de um demônio. Este ato foi puramente mecânico, e não houve uma triplicidade genuína. (PEIRCE, CP 86).
Terceiridade: Categoria do ser em futuro, da representação, significação e comunicação. Um futuro que influencia o presente de modo triádico, não dualista, como o passado influencia o presente. “Mas se ele (o mercador) houvesse feito mira no olho do demônio, teria havido algo mais que o simples jogar do caroço (…). Aqui teria intervido a intenção, a ação da mente. A triplicidade intelectual, ou mediação, e minha terceira categoria” (PEIRCE, CP 86).
O quadro seguir sintetiza os trechos selecionados e respectivamente, o signo e significados identificados tendo como base os conceitos de primeiridade, secundidade e terceiridade expostos acima

O filme é marcado por uma revelação. Depois de tantos diálogos sobre o assassinato e sobre as impressões que cada personagem tinha a respeito de Marcel, Catherine (a filha mais nova) revela que seu pai está vivo. A inquietação das mulheres é clara, afinal aquela armação fez com que cada uma revelasse seus segredos mais profundos. O discurso de Catherine em relação ao pai e aos acontecimentos deixa claro que toda aquela situação foi planejada. A menina revela que cortou os fios do telefone, sumiu com as chaves e que junto ao pai, forjou uma cena de assassinato.
É nesse momento, que cada mulher pensa na sua situação, afinal depois de tantas revelações não é possível voltar atrás. Nenhuma delas tenta mudar o discurso que criaram em relação ao homem durante o desenvolvimento da trama. Quando vão ao quarto de Marcel, para tirar satisfações, deparam-se com uma cena surpreendente. Marcel suicidou-se. A reviravolta da trama e principalmente do papel (o símbolo e o significado) que o personagem e único homem representa se dá nesse momento. O homem se mata por não conseguir conviver com tanta hipocrisia.

FICHA TÉCNICA
- título original: 8 Femmes
- gênero: Musical
- duração: 01 hs 43 min
- ano de lançamento: 2002
- site oficial: http://www.8femmes-lefilm.com/
- estúdio: Le Studio Canal+ / Centre National de la Cinématographie / Fidélité Productions / France 2 Cinéma / Gimages 5 / Mars Films
- distribuidora: USA Films / Imovision
- direção: François Ozon
- roteiro: François Ozon e Marina de Van, baseado em peça teatral de Robert Thomas
- produção: Olivier Delbosc e Marc Missonier
- música: Krishna Levy
- fotografia: Jeanne Lapoirie
- figurino: Pascaline Chavanne
- edição:Laurence Bewedin
Elenco:

Referências Bibliográficas:
1. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 9ª edição, 1983
2. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo, SP: Cultrix, 1977.
3. LOTMAN, Yuri. Estética e semiótica do cinema. Lisboa: Editorial Estampa 1978.
4. BONA, Rafael José. A semiótica do Cinema: O signo paterno no filme Central do Brasil. Disponível em < http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2007/resumos/R0005-1.pdf > Acesso em: 22 de nov. 2010.
5. Terra Letras. Disponível em < http://letras.terra.com.br/8-femmes/> Acesso em: 22 de nov. de 2010
6. SANTOS, José Milton. Semiótica Peirceana.
7. Adoro Cinema. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/8-mulheres/> Acesso em: 22 de nov. de 2010