Seu nome

(Fabrício Corsaletti)

“se eu tivesse um bar ele teria o seu nome
se eu tivesse um barco ele teria o seu nome
se eu comprasse uma égua daria a ela o seu nome
minha cadela imaginária tem o seu nome
se eu enlouquecer passarei as tardes repetindo o seu nome
se eu morrer velhinho, no suspiro final balbuciarei o seu nome
se eu for assassinado com a boca cheia de sangue gritarei o seu nome
se encontrarem meu corpo boiando no mar no meu bolso haverá um bilhete com o seu nome
se eu me suicidar ao puxar o gatilho pensarei no seu nome
a primeira garota que beijei tinha o seu nome
na sétima série eu tinha duas amigas com o seu nome
antes de você tive três namoradas com o seu nome
na rua há mulheres que parecem ter o seu nome
na locadora que frequento tem uma moça com o seu nome
às vezes as nuvens quase formam o seu nome
olhando as estrelas é sempre possível desenhar o seu nome
o último verso do famoso poema de Éluard poderia muito bem ser o seu nome
Apollinaire escreveu poemas a Lou porque na loucura da guerra não conseguia lembrar o seu nome
não entendo por que Chico Buarque não compôs uma música para o seu nome
se eu fosse um travesti usaria o seu nome
se um dia eu mudar de sexo adotarei o seu nome
minha mãe me contou que se eu tivesse nascido menina teria o seu nome
se eu tiver uma filha ela terá o seu nome
minha senha do e-mail já foi o seu nome
minha senha do banco é uma variação do seu nome
tenho pena dos seus filhos porque em geral dizem “mãe” em vez do seu nome
tenho pena dos seus pais porque em geral dizem “filha” em vez do seu nome
tenho muita pena dos seus ex-maridos porque associam o termo ex-mulher ao seu nome
tenho inveja do oficial de registro que datilografou pela primeira vez o seu nome
quando fico bêbado falo muito o seu nome
quando estou sóbrio me controlo para não falar demais o seu nome
é difícil falar de você sem mencionar o seu nome
uma vez sonhei que tudo no mundo tinha o seu nome
coelho tinha o seu nome
xícara tinha o seu nome
teleférico tinha o seu nome
no índice onomástico da minha biografia haverá milhares de ocorrências do seu nome
na foto de Korda para onde olha o Che senão para o infinito do seu nome?
algumas professoras da USP seriam menos amargas se tivessem o seu nome
detesto trabalho porque me impede de me concentrar no seu nome
cabala é uma palavra linda, mas não chega aos pés do seu nome
no cabo da minha bengala gravarei o seu nome
não posso ser niilista enquanto existir o seu nome
não posso ser anarquista se isso implicar a degradação do seu nome
não posso ser comunista se tiver que compartilhar o seu nome
não posso ser fascista se não quero impor a outros o seu nome
não posso ser capitalista se não desejo nada além do seu nome
quando saí da casa dos meus pais fui atrás do seu nome
morei três anos num bairro que tinha o seu nome
espero nunca deixar de te amar para não esquecer o seu nome
espero que você nunca me deixe para eu não ser obrigado a esquecer o seu nome
espero nunca te odiar para não ter que odiar o seu nome
espero que você nunca me odeie para eu não ficar arrasado ao ouvir o seu nome
a literatura não me interessa tanto quanto o seu nome
quando a poesia é boa é como o seu nome
quando a poesia é ruim tem algo do seu nome
estou cansado da vida, mas isso não tem nada a ver com o seu nome
estou escrevendo o quinquagésimo oitavo verso sobre o seu nome
talvez eu não seja um poeta a altura do seu nome
por via das dúvidas vou acabar o poema sem dizer explicitamente o seu nome”

A morte e a donzela

Sigourney-WeaverTenho usado muito o Twitter… um dia desses, conversando com um amigo próximo, descubro que ele gosta tanto da Sigourney Weaver quanto eu. Ficamos por dias comentando sobre seus trabalhos e de repente, me lembrei de “A morte e a donzela”. Vi o filme pela primeira vez quando era pequena. Na época fiquei impressionada com a densidade psicológica da Paulina – o que me chamava atenção era a sede de vingança da personagem e da incerteza que a situação produzia: será que ela encontrou o homem certo, o homem que a torturou há anos atrás? O filme veio a calhar: fiquei extasiada. O engraçado é que a sensação que tive foi a mesma de alguns dias atrás quando o revi: de completo desconforto.

Há uns dois anos (por sorte), perambulando em um shopping de Belo Horizonte, encontrei o filme em DVD. Comprei e guardei junto a minha coleção. É estranho, mas não tive coragem de assistir porque as cenas (e principalmente os diálogos) de alguma forma mexeram comigo. Fui revê-lo porque tinha combinado com um amigo assistir filmes com Weaver no elenco – meu amigo não veio e eu assisti o filme sozinha. Pouco tempo depois, perambulando pela internet, descubro que o “A morte e a donzela” é um filme de 1994, dirigido por Polanski. Tá explicado, Roman Polanski é brilhante.

A ambientação do filme é crucial para acentuar o clima de desconforto. A chuva, faz com que os três (e únicos) personagens fiquem presos naquele ambiente. Uma casa sem energia, que parece pouco convidativo. E se tem outra coisa, um pequeno detalhe que me encanta é que: não se sabe em qual país sul-americano ou em que ano se passa a história – afinal, esse não é o foco: o filme quer discutir a liberdade, a vida (ou a morte).

death-and-the-maiden

Então, vamos a sinopse:

“Em um país sul-americano após a queda da ditadura Paulina Escobar (Sigourney Weaver), a mulher de Gerardo Escobar (Stuart Wilson), um famoso advogado, fica sabendo no rádio que Gerardo deverá chefiar as investigações das mortes ocorridas no regime militar. Quando Gerardo chega, ela o vê acompanhado de um estranho que o socorreu na estrada, mas quando o desconhecido retorna à casa ela o identifica pela voz como sendo Roberto Miranda (Ben Kingsley), o homem que a torturou e a estuprou quando ela fazia militância política. Paulina decide então “julgá-lo” ali mesmo, apesar dos protestos do marido, que considera sua atitude precipitada além do fato do acusado alegar inocência.”

O filme possui detalhes magníficos, começando pela musica. Paulina foi capturada quando era ainda muito jovem. Tinha cabelos longos e ruivos… Um dia, quando saía da faculdade, foi surpreendida por militares. A orientação dos seus companheiros era de que se alguém estranho a abordasse na rua gritasse: “Meu nome é Paulina e estou sendo sequestrada”. Mas Paulina não gritou, sabia que morreria se resistisse. Paulina queria viver, queria estar viva para ver o país livre.

Após sessões longas de torturas e eletrochoques, Paulina se encontrou com aquelesite_28_rand_1428444645_death_and_the_maiden_pub_627 que mudara sua vida. Em princípio, o médico olhou suas feridas, deu-lhe sedativos para suportar a dor. Mas logo depois, enquanto se recuperava, ele a estuprou seguidas vezes deixando tocar ao fundo “A morte e a Donzela”, de Schubert. O interessante é que Schubert a compôs em 1824, logo após descobrir que tinha sífilis. Trata-se da história de uma donzela que encontra com a morte, mas que suplica para continuar viva. Desde então, após reencontra-se com o marido, Paulina passou a viver (ou sobreviver) com toda essa paranoia.

O estranho é que “A morte e a Donzela”, que é uma adaptação da obra teatral do chileno Ariel Dorfman não se tornou um clássico. O filme é magnífico e tem uma iluminação primorosa.  É uma daqueles que te deixa desacordada. E é por isso que eu ‘babei” nesse trabalho de Polanski: o cara pega um roteiro que poderia ser totalmente maçante e tranforma em uma história de arrepiar os pelinhos do braço (principalmente na cena em que a Paulina conta como foi torturada).  – Simplesmente fantástico.

Lo Fatal

(Rubén Darío)
 
Dichoso el árbol, que es apenas sensitivo,
y más la piedra dura porque ésa ya no siente,
pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo
ni mayor pesadumbre que la vida consciente.
Ser, y no saber nada, y ser sin rumbo cierto,
y el temor de haber sido y un futuro terror…
¡Y el espanto seguro de estar mañana muerto,
y sufrir por la vida y por la sombra y por
lo que no conocemos y apenas sospechamos,
y la carne que tienta con sus frescos racimos,
y la tumba que aguarda con sus fúnebres ramos
y no saber adónde vamos,
ni de dónde venimos!…

.Xmas.

CAM00133Há duas semanas eu conheci o Papai Noel. Ele estava sentado em um dos bancos da praça principal de Nova Lima, usava chinelos e levava uma sacola plástica cheia de latinhas. Achei estranho ele puxar papo, estava sentado ao meu lado há uns quinze minutos, observando o pisca-pisca que enfeitava o poste e de repente, me disse:

– Eu gosto muito de crianças, mas nunca tive filhos, eu acho.

– Você acha? Não tem certeza? (perguntei).

-Pelo menos nenhuma mulher apareceu com filho meu.

Ele se aproximou um pouco mais e disse:

– Eu sou o Papai Noel. Meu pai era o Papai Noel também antes de morrer. Mas agora eu não dou presente para as crianças, não tenho dinheiro. O problema é que eu tenho medo de Papai Noel, até rezo quando passo por um. Eu já passei necessidade sabia? Agora não, sempre ganho alguma coisa, roupas ou comida. Hoje mesmo uma mulher me pagou um cachorro-quente, e eu estava com tanta fome. Mas foi Deus, porque eu tinha acabado de sair da Igreja Universal. Vou muito à igreja e ao CAPS também, conhece?

– Conheço ( CAPS significa  Centros de Atenção Psicossocial).

– Eles me dão remédio quando vou lá. Minha mãe também tinha problemas de CAM00139cabeça igual eu tenho.  Mas a minha só piorou depois que levei um tombo e bati a cabeça no chão. Antes disso eu era normal. Eu trabalhava em um escritório, junto com o meu irmão. Eu fui contabilista, fui motorista. Já trabalhei muito. E você, o que faz?

– Sou estudante de jornalismo

– Eu também já fui repórter. Escrevia muito, trabalhava no rádio, escrevia para o jornal. Já contei que dirigia caminhão? Dirigia ônibus também. É muito fácil, é só controlar a embreagem. Mas agora eu cato latinhas, ganho 35 reais. Lá em Belo Horizonte eles pagam melhor.

– Parece que tem alguma formatura na igreja hoje.

– É.  Bonito mesmo são as luzes que estão enfeitando. Sabe, eu tenho 49 anos, mas dizem que pareço ter 32. Não acha?

– Acho.

CAM00135

Pra ser sincera, eu diria que ele tinha uns 54 anos, mas não queria contrariá-lo, o papo estava bom. Ele repetiu o nome pra mim umas cinco vezes, mas não consegui gravar, era um nome difícil. Enquanto conversava com ele eu fotografava a praça. Minha vontade mesmo era de fotografá-lo, mas não queria deixá-lo desconfortável. A conversa foi rápida, eu tinha que ir à Auto-Escola. Quando saí prometi que escreveria sobre ele, que escreveria uma história para ele. Mas  não consegui pensar em nada, em nenhum história bonita. Por desencargo de consciência e como forma de agradecimento pela companhia, aí está o texto que consegui escrever para o homem que conheci: Papai Noel.

CAM00136

.vie dynamique.

Não me surpreende que tantos poetas escrevam sobre o tempo, ele realmente nos aprisiona (ou nos liberta). Sabe, ainda não consigo entender o porque das coisas acontecerem daquela forma. Eu sei que você se machucou bastante. Eu também tenho as minhas cicatrizes. A queda foi muito alta:  para nos duas. Mas o tempo tem me ajudado a superar. Tem me mostrado que viver tão perto assim, tão forte assim, não faz muito bem. Nada em excesso faz bem: porque não nos lembramos disso logo no começo?

Índice

Agora você me pergunta o que sobrou. Um pouco de raiva, eu acho. A verdade é que eu tenho tentado não levá-la sempre no coração.  Aos poucos, deixo os resquícios nos caminhos que vou traçando. Desabafo um pouco com os amigos, leio, vou ao cinema, escuto música, vou à igreja. Até à igreja eu fui, acredita? Mas não consegui rezar por você… dessa vez não. Eu perguntei pra Deus porque me decepcionei tanto assim, mas a resposta ainda não veio. Começo a achar que é porque eu me entreguei demais, eu esperei demais e olha só no que deu.

Sinceramente: eu me assustei um pouco com essa capacidade monstruosa que o ser humano tem de não saber amar. Digo isso por mim, que queria saber amar (mas amar direito) e não consegui. E eu não me refiro a amor físico, sexual. Me refiro ao fraterno, de amigo. Só por desencargo de consciência: a coisa boa é que não há fórmula, então não adianta se culpar. Sofrer também faz parte.

Fiquei me perguntando o que faria se a visse passar por mim. Eu provavelmente não diria nada. Mas é a primeira vez (e você foi a primeira pessoa) que me fez sentir nojo. “Nojo”, eu sei, é uma expressão muito forte, mas por favor, vá além da epistemologia e use os sentidos – sem ofensas (não mais).

Você se lembra que eu vivia te abraçando? Eu não tive oportunidade de dizer isso quando fui embora: mas era afetuoso, era o mesmo abraço que eu dou na minha mãe, na minha avó, nos meus primos. Era abraço de proteção, de carinho. Só que hoje, eu iria repelir qualquer aproximação. Seria tortuoso só de pensar em tocar em você. Essa coisa de pele sempre me disse muito, não sei o por quê. Quando eu estava na igreja, pensando em você, só conseguia pedir desculpas a Deus por não conseguir te desejar nada de bom. Olha, eu  não desejei nada de ruim não viu – mas também não consegui desejar nada de bom. Que coisa triste né?

Não sei porque resolvi escrever sobre isso hoje, acho que é porque ontem sonhei com você. Deve ser o inconsciente mandando recado. No sonho você me deu uma carona. Não falamos nada. Lembro que tinha uma sensação aflitiva, queria descer logo e voltar para casa. O carro parou, nos despedimos:  você seguiu o seu caminho e eu o meu. E eu subi a rua pensando: “poxa vida, ontem mesmo falei com a minha mãe que nunca mais queria encontrá-la”.

Mas a vida até que foi boa com a gente, imagina: os panos caíram na hora certa. As pessoas que eu escolhi para continuarem na minha vida estão sempre por perto, fazemos planos inclusive: de  viajar, de morar perto, de sair muito. Tem coisa melhor? Não, não tem. E eu sei que você também tá levando a vida, conhecendo outras pessoas, vivendo outras histórias. Ainda bem. Graças a esse dinamismo da vida, tenho sobrevivido – tenho certeza que você também.

 ainda bem!

Muito mais que um crime

Imagine ter um pai amoroso, do qual você se orgulha mais do que tudo. Imagina que você tem um filho e que ele admira seu pai com a mesma intensidade. Seu pai ensina as tradições da família, preocupa-se com sua saúde e alimentação. Ele trabalhou duro em uma fábrica na América, para suster sozinho você e seu irmão, já que sua mãe falecera. Que vocês são muito unidos e que ele vive dizendo para os vizinhos e colegas que morre de orgulho de ter uma filha como você.

Imagem

Music BoxAgora imagine que de repente, seu pai recebe uma carta acusando-o de ser um criminoso nazista, que matou e torturou centenas de pessoas inocentes. Que de maneira cruel, estuprou mulheres, assassinou crianças e matou famílias sem piedade. Pois essa é a linha temática que guia o filme “Music Box” de 1989, com Jéssica Lange. O título em português é um pouco mais sugestivo, aqui no Brasil foi traduzido como “ Muito mais que um crime”.

Lange interpreta Ann Talbot, uma advoga criminalista que se vê em uma sinuca de bico.  Durante toda a sua vida, nada a fez duvidar do caráter do pai: um velho húngaro que se refugiou nos Estados Unidos após a queda da URSS. Sua dificuldade inicial é decidir se vai ou não assumir o caso, já que seu envolvimento emocional com o pai poderia prejudicá-la durante a investigação do processo. Após tomar a decisão, começa a se informar sobre todos os detalhes que de alguma forma poderiam incriminá-lo. Passa dias lendo os processos, buscando nos livros e nas testemunhas os argumentos mais plausíveis que comprovem a inocência do pai.musicbox

Logo de cara, é fácil dizer uma coisa: Jessica Lange está maravilhosa. Parece que depois de anos, ela aprendeu que voz delicada e olhos tímidos não combinam com certos personagens.  Vou um pouco mais longe: é bem provável que os trabalhos que realizou no teatro tenha ensinado a impor a voz nos momentos certos. Acontece que o filme é lindo, é emocionante, e rapidamente, ela nos convence que Annie é uma mulher forte e destemida.

São duas horas de filme, que te questionam a todo o momento: “o que você faria se estivesse no lugar dela?”. Provavelmente a mesma coisa. Ela defende a inocência do pai com unhas e dentes, chega inclusive a jogar sujo para consegui-lo. Mostra que aprendeu muito bem a atuar e se defender durante a troca cansativa de diálogos cínicos dos promotores. Não tem medo de ser mulher em meio a tantos homens e sustenta as conversas com o mesmo nível. Mas seus olhos não mentem. Cada testemunha de acusação que aparece e que conta histórias horrendas a fazem tremer, só de imaginar a possibilidade do pai ter realmente os cometido.

O julgamento é movimentado. A imprensa cumpre seu papel. Manifestantes rondam a casa da advogada, jogam pedras e cobram que Mike Laszlo(pai de Annie) seja considerado culpado. Há uma  testemunho emocionante de um homem que conta que não poderia esquecer do dia em que Mike entrou em sua casa, prendeu toda a sua família, assassinou a mãe, o pai e o filho. Mike os prendeu, e os jogou no rio. Por sorte, o homem sobreviveu e, ainda que velho e cansado, pode testemunhar contra aquele que acredita ser um criminoso. E a advogada segura o choro (essa cena é linda).

music-box-1989-07-g

“Music Box” é um filme emocionante, aliás, é bacana ver todos os contrapontos de uma pessoa que se vê no fim da linha (e tem Lange falando húngaro fluentemente). Quando suas afetividades são questionadas, o sangue as vezes fala mais alto. É o que acontece com Annie, que no desenrolar do caso vai confrontando a credibilidade do homem que durante toda a vida chamou de pai. Ainda que bem menos surpreendente do que eu pensei que seria, o filme conseguiu prender a minha atenção do começo ao fim (especialmente no fim), que é uma honrosa menção ao que há de melhor dentro da gente: os nossos valores.

Music Box

Pálpebras de Neblina

(Caio Fernando Abreu)

Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: “Não digas ‘Eu sofro’. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?” Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia – coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban – filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega – aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja.

Caio F
E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar – exposta, imoral, escandalosa – sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia – uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu “dói tanto”, contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou “porquê?”, compreendi ainda mais. Falei: “Porque é daí que nascem as canções”. E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?

A comunidade

Hoje de manhã, quando voltava de um exame encontrei uma senhora no ônibus que me pegou de papo. Larissa me disse que é de Madri, mas que está passando uns dias em Belo Horizonte ao lado das duas filhas que se mudaram pra cá há dois anos. Estava encantada com o “bus” daqui, “que tem um lugar reservado para viejitos”.

– “Mi marido se fué”, ela disse.

E eu, perguntei na cara dura: se foi pra onde?

-“Se murió” (ele morreu, explicou).

Uma pena ter descido correndo, não deu tempo de passar meu email e telefone. Disse que estudava jornalismo, que gostava de cinema, que morava em Nova Lima e que todos os dias tinha que pegar o ‘bus’. Larissa me indicou um nutricionista, um dermatologista e um dentista em BH, parece que conhece a cidade muito mais do que eu. Me perguntou se eu conhecia Carmen Maura, Almodóvar e Marisa Paredes. Achei um máximo! Eu sou apaixonada pelos três, justamente pelos três.

com

Quando ia descendo, Larissa me desejou “¡Feliz Navidad!” (adoro o jeito que eles escrevem a exclamação de cabeça para baixo) e me indicou um filme: “La Comunidad”, com a Carmen Maura.  Conscidência ou não, é um dos meus preferidos com a atriz. Assisti há algum tempo atrás pelo Youtube, e indico para qualquer um que queira conhecer um pouco do cinema espanhol.

O filme é de 2000, dirigido pelo brilhante Alex de La Iglesia e conta com o melhor do humor negro.  Não há nada de convencional na trama, nem mesmo os moradores do pequeno condomínio: que aos poucos, vão revelando atitudes assombrosas. As referências do diretor são clássicas, entre elas: Alfred Hitchcock e Roman Polanski.

Carmen MauraNa resenha de Mariane Morisawa publicada na Istoé, há uma reflexão impecável: “Alex de la Iglesia imprime um tom surreal e divertido ao filme desde os créditos, que lembram as aberturas dos trabalhos de Alfred Hitchcock e Roger Corman. A comunidade do título, na verdade a reunião dos condôminos do tal prédio, é uma mistura de gente que parece de outro mundo, mas que infelizmente está aqui mesmo”

O que move a ação dos personagens é avareza extrema (e engraçada), que faz com que percam a noção do exagero de suas atitudes.  Júlia (personagem de Maura) é uma corretora de imóveis infeliz, casada com  um homem desempregado e sem chances de sair daquela vida.  Um dia visita um apartamento (que deveria vender) e resolve passar uma noite nele.  Curiosa, entra na casa do vizinho de cima.

Ela então descobre que ele está morto (e provavelmente há muito tempo, já que seu corpo continua naquele lugar, apodrecendo). Depois que chama a polícia, para recolher o corpo, volta ao local e descobre uma quantia absurda de dinheiro, escondida embaixo do piso.  O que era um sonho se torna um pesadelo.  Aquela quantia não era segredo para os outros vizinhos, que passam a tentar impedi-la de sair do local.

As gravações ocorrem de verdade em um edifício abandonado, no centro de Madri. A lacomunidadidéia era gravar apenas em um dos apartamentos, mas os diretores viram que precisariam filmar em todo o prédio.  O mais interessante é que o diretor consegue unir no mesmo filme, referências Pop’s e surrealistas. E por isso, prende do início ao fim, quem gosta dessa temática. Quanto a Maura, a atuação é tão boa, que a atriz venceu (merecidamente, é claro) o prêmio Goya do ano.

Então, fica a dica: minha e da Larissa: “ A comunidade” que também  traz  Sancho Gracia, Teréle Pávez, Kity Manver, Paca Gabaldón, Manuel Tejada, Enrique Villen, María Asquerino e Marta Fernández Muro no elenco.

Curiosidades:

-Filmado totalmente em um cenário interno, com exceção das cenas de rua e do terraço.

-Na cena da banheira é usado um colchonete para amortecer a queda

-Carmen Maura teve realmente participação nas brigas e cenas com ratos e baratas

-Alex de Iglesias comentou que descobriu que neste filme a atriz mais talentosa que já trabalhou: Carmem Maura

– A maioria dos atores faziam trabalhos no teatro, o que auxiliou na rostidade construida por cada personagem

Olhos de Azeviche

(Elisa Lucinda)

Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui…
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim…
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu co’a minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?

Segredo de Sangue

Segredo de Sangue - CAPA

Estou tentando cumprir a desafio de escrever sobre os filmes de Jessica Lange. Na madrugada de ontem, vi no Investigation Discovery: “Segredo de Sangue” (filme de 1998, dirigido por Mark Tonderai, com Gwyneth Paltrow e Johnathon Schaech).  Quando acabou, às 3 horas da manhã, fiquei me perguntando se ficava alegre por ter conseguido vê-lo (já que é difícil de encontrar), ou com raiva: porque ele marthaé decepcionante. E pior: decepcionante ao pé da letra: inclusive nos quesitos de fotografia.

Na verdade o filme não é um total desperdício. É gostoso ver Jessica Lange e Paltrow dividindo a tela (independente desse tortuoso roteiro). A história é muito simples, típica dos filmes de suspense americano dos anos 90: “Helen descobre que está grávida do namorado Jackson, os dois que vivem em Nova York decidem se casar e mudar para Kilroran (uma grandiosa propriedade rural que precisa de algumas reformas). O local sempre esteve aos cuidados de Martha Baring, mãe de Jackson. A mulher, no entanto, é neurótica, ambiciosa e ciumenta. E começa a fazer de tudo para afastar Helen do seu filho.”

Apesar de ter um personagem de destaque, Lange apresenta uma atuação contida e pouco convidativa. Aliás, ela recebeu uma indicação ao Framboesa de Ouro (o famoso Razzie Awards) pelo prêmio de pior atriz do ano. Um dos problemas do filme é que ação demora muito para começar. Parece até que precisaram correr com o final, que já não dava mais tempo. [SPOILER] Imagine que a única vingança da mocinha foi um tapa na cara  da vilã e um sorriso irônico no  final. Helen revelou o segredo de Martha e conseguiu afastar o filho dela. Acontece que tudo isso estava muito claro: não havia mistério, era evidente que Jackson não tinha matado o pai.

Pra explicar melhor: Jackson se recordava que quando tinha uns sete anos, presenciou uma discussão entre o pai e a mãe. Ela queria se separar, porque ele estava a traindo. Martha então sai de cena. Com raiva, Jackson agarra as pernas do pai e ele acidentalmente cai e morre. Mas a versão verdadeira é um pouco diferente: Martha é quem tinha um amante e por isso, o pai de Jackson resolvera abandoná-la. Em sua fúria, matou o marido e deixou que o filho se culpasse. Todo esse fraco mistério faz com que a figura de Jackson fique ainda mais pedante. Não há sequer um momento em que ele se mostre interessante, ou de personalidade forte. A mãe diz uma coisa: ele faz. A mulher diz outra: ele faz.

Logo (e também por causa disso: da fraqueza na construção dos personagens), que o final se torna totalmente angustiante de ruim: nos últimos segundos, Helen conta o “grande” segredo de Martha para Jacmartha 2kson, ele se levanta e diz: “Você não é minha mãe, vou vender tudo isso e você não vai ficar com nada”… Helen dá um tapa na cara de Martha (pelo menos isso), e sai. THE END.

Acho que fui com sede ao pote. No mais, quem se sobressaiu aí foi a Gwyneth Paltrow que se saiu bem no papel de mocinha – Sem dúvidas, a cena mais interessante é a do parto, quando Martha induz o nascimento do bebê com remédios para cavalo. A desprotegida Helen, que estava distante do namorado, fica a mercê das maldades da sogra que parece não se importar em vê-la sofrendo.

Resta comentar sobre a avó de Jackson, mãe do marido de Martha:  um personagem crucial, que abriu os olhos da Helen e lhe contou sobre o passado obscuro de Martha (“ que limpava bosta de cavalos e queria um sobrenome importante”).

HushHushHUSH