Luz

Conheci Samira em Agosto do ano passado. Estávamos na Praça da Estação e íamos participar da Marcha Nacional Contra a Mídia Machista. Samira tinha acabado de se unir ao grupo e me perguntou, um pouco envergonhada, se eu conhecia uma menina chamada Bárbara. Elas tinham marcado de se encontrar, mas a menina acabou não aparecendo.

- Marcha Nacional contra a Mídia Machista, agosto de 2012
– Marcha Nacional contra a Mídia Machista, agosto de 2012

Enquanto a Marcha não saía, conversamos sobre diversos assuntos. Samira me contou que há anos se interessava pelo feminismo e que essa era a sua primeira marcha. Disse que fazia psicologia e que tinha algumas ideias para intervenções. Lembro que me pediu o óculos escuro emprestado, ela estava sem lentes e olhos doíam na claridade. Seguimos até a Praça da Liberdade, entoando gritos feministas e dividindo olhares de cumplicidade. Não só eu e a Samira, todos que estavam participando da Marcha tinham os mesmos olhares, a mesma ideologia. Na despedida, trocamos e-mails, telefone e prometemos uma a outra, que não iríamos perder contato.

Passamos a nos encontrar frequentemente na faculdade, tínhamos diversos planos. Aos poucos, Samira foi se tornando uma amiga. Dividíamos segredos, trocávamos indicações de livros, íamos ao cinema, a museus. – Samira Luz, era assim que ela gostava de ser chamada. Se não me engano, foi em outubro que aconteceu a Noite Branca em Belo Horizonte. Ficamos até as quatro horas da manhã no Parque Municipal admirando as obras de arte, brincando no gramado e discutindo feminismo. Samira tinha queda por assuntos que envolviam “religião”. Além das teorias, sempre indicava um artigo ou livro sobre o papel das mulheres na história religiosa. Ela tinha uma fome de conhecimento insaciável. Dizia que acreditava em um Deus de amor e de justiça.

Em uma quarta-feira qualquer eu saí do serviço e fui encontrá-la  a noite. Eu, ela e uma outra amiga, a Anna Bella, tínhamos combinado de ir a um barzinho juntas. Não me recordo porque, mas a Anna não pode ir. Então, ficamos eu e Samira, tomando refrigerante e dividindo histórias. Lembro que ela me disse que desde pequena, sentia-se feminista. Era uma aluna aplicada, que sentava-se na primeira carteira e fazia redações sobre as condições das mulheres. Eu não sei se era apenas uma divagação, mas ela falava com muita certeza. Achei graça quando ela sugeriu que ficássemos, por uma semana, fazendo movimentos em Belo Horizonte. Ela queria montar barracas de orientações, apresentar peças e vídeos. No íntimo, eu pensava: “ não temos estrutura para isso”.

Não tínhamos mesmo. Mesmo assim, colocou a ideia no papel, dividiu no grupo do Facebook. Samira era assim. Ela não queria atingir poucas pessoas, ela queria atingir todo mundo, entende? Acho que esse é um frescor da juventude, essa inocência de achar que pode mudar as coisas. Participamos de outras marchas juntas. Na última, Samira observava algumas pessoas, me chamava no canto e dizia: “olha só que semblante sério” ou então “olha que pessoa ensopada”. Ensopada ou carregada de sentimentos.

Vivíamos conversando pelo Facebook ou por telefone. Um dia ela me ligou e contou sobre uma convenção que acontecerá em Julho para discutir a participação das mulheres na religião. A conversa ia muito além da pergunta que eu sempre fazia: “Porque uma mulher não pode comandar uma missa?”. Samira sempre me dizia que essa discussão é mais profunda e que envolve aspectos antropológicos e éticos. Ela estava muito feliz. Foi convidada a ser uma das representantes do movimento aqui em BH e eu lembro que disse que iria em cada reunião para apoiá-la. Aliás, Samira sempre me apoiou muito, tanto nas discussões como nas brincadeiras. De fato… éramos cumplices.

Combinamos de ir a uma boate. Iríamos na sexta-feira. Mas a alguns minutos antes de encontrá-la, Samira me ligou, com uma voz desanimada, dizendo que não poderia sair mais. Não entrou em detalhes, mas disse exatamente essas palavras: “A carga está pesada”. Eu não quis insistir muito, combinamos de sair na semana seguinte. Minutos depois ela me ligou novamente, perguntando se eu estava chateada. Eu disse que não estava. Ela reforçou o convite: “Vamos sair na próxima semana e qualquer coisa, você e a Anna dormem aqui em casa”.

Três ou quatro dias depois, Anna Bella me liga perguntando: “O que aconteceu com a Samira?” Eu não fazia ideia. Entrei no seu perfil no Facebook e me deparei com inúmeras mensagens de despedidas. Samira faleceu.

– Já se passaram duas semanas e a ficha ainda não caiu. Não sei como, nem porque mas Samira morreu aos 20 anos. Foi por isso que resolvi escrever esse texto, para lembrá-la (ou melhor), não deixar que a esqueçam (apesar de acreditar que isso é impossível). Samira fez muitos amigos e passou muita energia positiva. Eu não a via sempre, não conversávamos todos os dias, mas estávamos presente uma na vida da outra.

Quando acontece uma coisa assim, parece que tomamos consciência da nossa fragilidade. É como se o destino viesse te dar um soco, dizendo: “Olha só, aproveita porque não será pra sempre”.  Aí dá um aperto no coração e você pensa: poderia ser comigo. E se fosse comigo? Como a minha mãe ficaria? Como a mãe de Samira está? Aí comentei com a minha mãe da frase que ouvi em AHS:

Um dos vários confortos em se ter filhos é saber que a sua juventude não se foi, mas foi meramente passada para uma nova geração. Dizem que quando um pai morre, a criança sente sua própria mortalidade… mas quando uma criança morre, é a imortalidade que um pai perde.

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