Um canto de esperança/Paradise Road (de 1997, dirigido por Bruce Beresford) é aquele tipo de filme que fica marcado na memória. Lembro de tê-lo assistido há anos atrás e algumas das cenas não saíram da minha cabeça. A história é extremamente forte e apresenta um tom realístico que é intensificado por uma produção sensível e por atuações marcantes. Glenn Close encabeça o elenco feminino que também conta com Cate Blanchet, Pauline Collins e Frances McDormand.
A trama se passa na década de 1940, japoneses invadem Cingapura e forçam várias crianças e mulheres a viverem em um campo de concentração onde realizam inúmeros trabalhos, sofrem agressões físicas e psicológicas. Entre essas mulheres encontra-se Adrienne Pargiter (Close) formada na Academia Real de Música que, junto a Daisy ‘Margaret’ Drummond (Collins) organiza um coral e enfrenta a resistência do exército japonês.
Gosto do clima inicial do filme onde um grupo de aristocratas e suas respectivas mulheres comentam e ironizam a guerra. As opiniões se dividem quando falam sobre os japoneses: uns acreditam que eles são perigosos, outros de que não há nada a temer. O início da trama nos dá ideia do padrão de vida dos protagonistas: mulheres lindas e maquiadas, homens em ternos caros, mesas bem servidas e uma deliciosa música ao fundo. O ar de desconforto e incerteza aumenta quando escutam barulhos de bombas que invadem o salão. As mulheres [que estavam visitando os maridos] precisam voltar imediatamente para casa, a cidade está sendo atacada.
No navio, somos apresentados às personagens principais: Adrienne (Glenn Close), Susan Macarthy (Cate Blanchet), Mrs. Tippler (Pamela Rabe), Mrs. Roberts (Elizabeth Spriggs), Topsy Merritt ( Julianna Margulies), Daisy ‘Margaret‘ Drummond (Pauline Collins) e Rosemary Leigthon Jones (Jennifer Ehle). Há um pequeno e engraçado diálogo onde elas se apresentam umas as outras: sou esposa do dono de uma empresa de café, sou esposa do dono de uma empresa de tecidos (…). O navio (repleto de mulheres e crianças) é surpreendido por um novo ataque e todos são obrigados a abandona-lo. Adrienne, Susan e Rosemary ficam horas na água, até que conseguem chegar em terra firme.
Repletas de ferimentos na pele, as três conseguem uma carona de um militar japonês (aparentemente gentil) que as deixa em um local desconhecido. Adrienne chega a discutir com o militar, dizendo que o navio que atacaram só levava pessoas indefesas. Sem perceber, Adrienne, Susan e Rosemary são abandonadas em um campo de concentração e lá encontraram várias mulheres (inclusive algumas que estavam no navio) vivendo em terríveis condições.
Desde então, elas são obrigadas a acordar cedo para trabalhar, precisam dividir pouca comida e viver com água escassa. Além de apanhar diariamente, ficam expostas ao mau cheiro e a diversas doenças que assolam o grupo. Elas sofrem um choque de realidade, antes acostumadas com uma vida repleta de luxo e agora vivendo como escravas. Não demora para que os conflitos comecem a surgir, tanto externamente quanto dentro do grupo.
Personagens maniqueístas: a luta do bem e do mal
Talvez por apresentar um grande número de personagens (e não ter tempo nem espaço suficiente para desenvolvê-los) Beresford tenha escolhido apresentá-los com características muito marcantes – não sei afirmar se no livro a abordagem é feita da mesma maneira. Adrienne é a líder, justiceira e corajosa. Susan é atrevida, jovem e enérgica. Mrs. Roberts é avarenta (e a personagem que mais ironiza/critica a burguesia). Não há como questionar a presença da seguinte relação maniqueísta: os japoneses são maus e as prisioneiras são do bem, mas essa relação ainda bifurca-se e divide os personagens dos dois grupos:
No ambiente das prisioneiras Mrs. Tippler e Daisy são fortes personalidades em contraponto. Enquanto Daisy (a missionária que parece ainda mais gentil com aqueles grossos óculos) apazigua as companheiras, é paciente com as crianças e com os militares. Mrs Tippler é desonesta com as outras mulheres, incita as brigas e desestimula o coral. No final, Daisy recebe a redenção do sofrimento através da morte enquanto Mrs Tippler é separada dos filhos.
No grupo dos militares japoneses o Capitão Tanaka (Stan Egi) é cruel com as prisioneiras, impõe diversos castigos e proibições. Em uma cena fortíssima, ele obriga Susan a se ajoelhar por horas diante de estacas que podem perfurá-la a qualquer momento. Em contrapartida, o intérprete (David Shung) tenta ser gentil com as mulheres e sempre mantém a calma quando conversa com elas (Adrienne chega a chamá-lo de covarde).
A história que inspirou o filme
O filme baseia-se no livro de Helen Colijn: “Song of Survival: Women Interned” onde ela descreve com detalhes a vida de mulheres que foram prisioneiras em um campo de concentração japonês durante a Segunda Guerra. Helen e a irmã Antoniette ficaram presas nesse campo de concentração e juntas, presenciaram o trabalho de Margaret Dryburgh e Norah Chambers: duas inglesas que no início de 1943, se uniram para amenizar o duro cotidiano das prisioneiras e criaram um coral.
Margaret era uma missionária e Norah havia estudado piano, violino e canto na Academia Real de Música em Londres. Margaret se lembrava das partituras e as escrevia escondido em um pedaço de papel, os ensaios eram feitos com muito cuidado para não chamar atenção dos japoneses. As mulheres cantavam várias músicas clássicas como as de Chopin, Beethoven e Dvorak. Reproduzo o texto do Paulo Franke onde ele detalha com mais riqueza os acontecimentos:
Helen comentou: “Imagine-se em um campo de prisioneiros com fome, camundongos, baratas, com aquele cheiro terrível de banheiros e a gritaria dos guardas à sua volta! E de repente você ouve essa música. É algo magnífico que dá o sentido de união, mas também de força para continuar vivendo em uma situação que parece não ter fim. É algo positivo surgindo de uma experiência muito negativa. Por essa razão posso falar do campo sem ter que passar por todos os pesadelos novamente.” Margaret faleceu no dia 21 de abril de 1945 e foi sepultada em um cemitério perto do campo, sob as palmeiras. Mais tarde, Norah escreveu em seu diário: “Ela foi admitida no hospital e poderia ter melhorado, mas, como muitas outras pessoas, estava fraca demais e por isso não houve chance de recuperação. Ao visitá-la, ela me reconheceu e tentou falar. Tentou repetir o seu salmo preferido, o 23, o que eu fiz por ela tão bem quanto pude.”