Do diário de Silvia

Do diário de Silvia foi escrito por Erico Veríssimo em 1961 enquanto ele se encontrava em Virginia, Estados Unidos. O diário encontra-se nos últimos capítulos de o ‘O arquipélago’ (que compõe a trilogia de ‘O tempo e o vento’ – formado também por ‘O Continente’ e ‘O Retrato). No livro, escrito em primeira pessoa, Silvia relembra a infância e expõe a vida conturbada que teve com a mãe, a ausência da figura paterna, o insucesso do casamento com Jango e também fala do amor proibido que sente pelo cunhado: Floriano.

Em seus textos, há uma interlocução com vários personagens de ‘O tempo e o vento’ (como o seu padrinho Dr. Rodrigo,  Dinda – já com 85 anos e completamente cega, o comunista Arão Stein, Tio Bicho e Zeca). Com grande dose de subjetividade, Silvia conta sobre seus pesadelos constantes com a mãe, sobre seus abortos e sua intensa relação com a terra. Outro aspecto interessante é que a história se passa na década de 1940 e há diversas menções a acontecimentos históricos como a implantação do Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial.

Fiquei encantada pelo livro! Principalmente porque logo na primeira página, Silvia reflete sobre o hibridismo humano. Passei a lê-lo intensamente e marcar as passagens que me pareciam mais belas, das quais, tomo a liberdade de reproduzir:

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– Isso prova que, como todo o mundo, tenho dupla personalidade. Agora sou a que escrever e depois serei a que lê. Qual! Tenho muitas Sílvias dentro de mim. Cada vez que eu reler estas páginas, serei outra. E cada uma dessas outras será diferente da que escreveu.

-Em certos momentos, chegamos a ter até um certo orgulho de nossas tristezas e infelicidades, e usamos essas ‘desgraças’ para comover os outros e arrancar deles piedade ou amor. (Não quero piedade, quero amor). Em suma, uma chantagem. Um caso parecido com o da Palmira Pepé, que há anos anda pelas ruas da cidade manquejando, choramingando e mendigando. Quando os médicos querem curar-lhe o defeito da perna, a Palmira recusa, alegando que, se sarar, não terá mais razão de pedir esmolas.

-Afinal de contas, onde está mesmo Deus? Não sei. Sinto que ainda não o avistei. Se Ele me conceder a graça da Sua presença, estou certa de que minha vida mudará para melhor. Em suma, necessito que Deus exista.

– Temos a tendência de classificar as pessoas como os naturalistas classificam as borboletas, feito o que as espetamos com um alfinete contra um quadro… e pronto!, passa a ser peças do nosso museu particular. Acho que foi isso que Jango fez comigo. Não quero fazer o mesmo com ele.

-Por que escrevo todas estas coisas que ninguém, mas ninguém mesmo, deverá nem poderá ler a não ser as outras Sílvias?

-Eu gostaria de compreender melhor as outras pessoas. Seria um modo indireto de me compreender a mim mesma. Gosto de gente. Desejo que os outros gostem de mim. A minha vida não teria sido, toda ela, uma busca de amor?

-Gostamos de nos imaginar bons e generosos. Mas se nos debruçarmos sobre o poço de nossos sentimentos e desejos mais secretos, esse túnel vertical onde se escondem nossas maldades, mesquinhezas, egoísmos e misérias – estou certa de que não reconheceríamos a nossa própria face refletida na água do fundo.

– Quando mamãe morreu, meus olhos permaneceram secos. Eu, que me comovo com facilidade com as histórias tristes imaginárias que leio em romances ou vejo no cinema, não tive lágrimas para chorar a morte da criatura que me deu o ser. O que eu senti foi uma espécie de alívio, mas um alívio doloroso, desses que dilaceram o peito. [Mas Sílvia, você cuidou da sua mãe durante toda a vida]. Eu queria ter feito por amor o que só fiz por um sentimento de dever. É isso que me dói.

-Um talho pode não doer muito na hora em que é produzido, mas deixa uma cicatriz que, bem ou mal, a gente carrega vida em fora… Uma cicatriz que em certos dias comicha e nos leva a pensar na pessoa que nos feriu. [Ainda com rancor?] Não, Zeca, mas com uma enorme tristeza. Porque não podemos deixar de perguntar a nós mesmos se a feria era necessária.

-O fato de acreditarmos em Deus não elimina necessariamente todas as nossas dúvidas a respeito da vida e mesmo do próprio Criador. Eu cá tenho as minhas ‘diferenças’ com Deus. Qual é o filho que não briga de vez em quando com o pai? Isso significa que ele deixa de amar o Velho? Ou que cessa de acreditar na sua existência? Ou na sua bondade? Está claro que não. E vou te dizer outra coisa importante. Levantou-se, aproximou-se da panela, apanhou outro pinhão, descascou-o e ficou a comê-lo com ar distraído, como se tivesse esquecido do que ia dizer. Depois, tornou a sentar-se a meu lado e disse baixinho: “Olha. Os grandes arranha-céus têm a capacidade de oscilar com o vento… Sabias? Pois é. Se não oscilassem, viriam abaixo. Assim é a fé. Uma fé dura e inflexível pode transformar-se em fanatismo ou então quebrar-se. A fé que se verga como um junco quando passam as ventanias, essa resiste inata. Portanto, não te preocupes. Continua a duvidar. Deus está acostumado a essas nossa fraquezas”.

-O Bento é um tipo de herói cuja presença e valor ninguém nota, porque ele atomizou, fragmentou seu heroísmo em dezenas de milhares de pequenos gestos e atos cotidianos através de toda a sua vida, de tal maneira que eles não deram e não dão na vista.

– Estou de acordo com Stein num ponto. Não é com caridade que se vai conseguir melhorar a vida dessa pobre gente, mas com uma reforma social de base.  Na minha opinião, porém, a solução não está nos métodos stalinistas. Alguém escreveu que o mal de nossas revoluções é que elas começam com a violência, para imporem um ideal, mas depois o ideal fica esquecido e permanece apenas a violência.  E como é fácil recorrer a brutalidade!  Como é natural! Como isso está de acordo com a nossa condição animal. Parece fora de dúvida que a violência goza de mais popularidade que a persuasão.

Do diário de Silvia/ Erico Verissimo – 2. ed – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.