Consolação começa em Paris, Laura acompanha os últimos momentos do seu marido, Jacques – que está em um leito de hospital, moribundo. O texto, escrito em primeira pessoa e com diversas intervenções psicológicas, nos contextualiza sobre a sua situação: Jacques sofre dores terríveis, tem uma enorme ferida na boca, dificuldades para respirar e clama pela morte.
Laura implora para que a médica responsável pelo caso termine com seu sofrimento, mas não consegue o que deseja: “Durmo e acordo com a palavra eutanásia. Euthanos… a boa morte. Por que a boa morte é proibida? Por que a lei obriga o homem a sofrer? Gemendo e chorando nesse vale de lágrimas. Mais que isso: Bendizendo a nossa dor. A dor é o castigo bendito de Deus…ela expurga o pecado do sexo. A mulher que amaldiçoasse as dores do parto era condenada à fogueira pela Inquisição”.
Enquanto seu marido praticamente vegeta (não consegue mais comer ou falar), Laura se torna uma observadora, um agente passivo diante da morte do ente querido.
Laura não está sozinha, seu filho Alex também assiste a morte do pai. Mas agora ela está viúva e precisa olhar pra frente: “Chorar, sim; soluçar, não. Interessa mostrar a dor? E para o choro tem um tempo. Lamentar a infelicidade atrai a infelicidade”. Depois que Jacques morre, Laura viaja para São Paulo e realiza um encontro com sí mesma e com a família que deixou quando mudou-se para a França.
Antes de ir para casa da mãe e da irmã, decide ir ao cemitério Consolação visitar o túmulo do pai. No caminho se depara com um enorme engarrafamento e decide ir a pé. Enquanto se dirige ao cemitério encontra personagens (“os que nunca são vistos ou ouvidos”) que possuem histórias de vida tão interessantes quanto a sua. ‘
Betty Milan é uma psicanalista paulistana, conheci seu trabalho através de uma peça de teatro protagonizada por Bete Coelho (Adeus, doutor!) e depois disso passei a acompanhar sua coluna na Veja (Consultório Sentimental). Fiquei feliz em encontrar seu livro Consolação (publicado em 2009) por apenas R$ 8,00. O li em pouco tempo e várias passagens me incitaram a refletir sobre a vida, sobre a morte e sobre a dor.
É engraçado porque não consegui me identificar muito com a personagem principal. Depois que ela chegou em São Paulo, a única coisa que sabia fazer era reclamar, nada atendia a Laura: o trânsito estava ruim, o rio transbordava trazendo doenças, a arquitetura uma cópia do que foi feito em outros países, ‘só buraco no chão’ e muitos mendigos na rua. Enquanto Paris simbolizava o paraíso, São Paulo era o inferno. – Fiquei com raiva, Laura me pareceu ingrata com a cidade onde nasceu.
Compartilho alguns de seus preceitos, não concordo com o prolongamento da dor. Não sou especialista no assunto, mas acredito que ninguém merece viver em desconforto, em sofrimento, a não ser que apresente um quadro do qual pode se recuperar. Dizem que a gente só sabe de verdade o que é dor quando ela está no nosso corpo.
Mas, quando ela diz “Chorar, sim; soluçar, não. Interessa mostrar a dor? ” tenho lá as minhas dúvidas. Essa metáfora presente no livro, onde Laura/Milan defende a idéia de que não se deve demonstrar luto por muito tempo, nem espernear ou mostrar a dor me lembrou um dos primeiros episódios de Six Feet Under, quando o marido da Ruth Fisher morre. Primeiro, ao saber da notícia, Ruth tem um ataque na cozinha. No velório, diante das pessoas, senta-se contida e quase não faz barulho, tudo porque não fica bem e não é chic aparentar fraqueza/dor.
David, filho de Ruth, questiona: qual o problema em demonstrar a dor? Qual o problema em chorar e gritar até perder a voz se, o que se sente é uma tristeza tão grande que quase não cabe no peito?
(Coloquei o vídeo do episódio abaixo e tenho que evidenciar que a Frances Conroy é magnífica! )
Por fim, só me resta dizer que fiquei encantada com os momentos em que Laura, dentro do cemitério, conversou com Oswald de Andrade – como se Laura tivesse feito as pazes com o país. Gosto, principalmente, quando ele fala sobre a antropofagia e diz o seguinte:
Laura: – O manifesto antropófago… Aprendi com ele a gostar de canibais.
Oswald: – Canibais não, antropófagos… O canibalismo é coisa lá do europeu, que comia carne humana para se saciar ou para se curar. Os médicos inclusive aconselhavam a beber sangue humano. De preferência quente. Até o século XIX, os carrascos ganhavam a vida vendendo partes do corpo do criminoso. O canibalismo não tem nada a ver com a antropofagia. Os tupis não comiam carne humana para se satisfazer. Comiam por respeito ao morto e à sua família. A antropofagia era um rito de amor. Os índios consideravam o enterro uma prática horrenda, bárbara mesmo. A idéia do cadáver apodrecendo na terra era insuportável para eles.
[Consolação / Betty Millan – Rio de Janeiro, Record, 2009]