A obscena senhora D

Quem acompanha o La Amora sabe que eu sou alucinada com a Hilda Hilst. Desde que entrei na faculdade e fui apresentada a autora, comecei a ler e pesquisar sobre ela como louca. Hilst (1960-2004) é única, possui uma linguagem complexa, densa e contemporânea. Famosa por ser “belíssima” na juventude (e, inclusive, ser uma das grandes paixões de Carlos Drummond de Andrade), Hilda completou a faculdade de direito, mas não seguiu a profissão: preferiu dedicar-se a escrita e assim o fez, lançou seu primeiro livro aos vinte e três anos.

Mudou-se para a Casa do Sol em 1963 e lá estabeleceu uma rotina de escrever todos os dias pela manhã (e poesia a qualquer hora). Por muito tempo a autora foi alvo de críticas e viu-se envolvida em polêmicas, em entrevista, por exemplo, afirmou que fazia contato com alienígenas e com mortos em sua residência. Hilst, que dedicou a sua vida a literatura, reclamava da falta de leitores, os críticos taxaram sua obra como “de difícil compreensão”. Hilda afirmou:“fico besta quando me entendem”.

Como todo e qualquer autor, Hilda queria ser lida. Queria superar o círculo de admiradores que já conheciam a sua obra e se chateava por não conseguir estabelecer uma relação com os seus leitores. “E então eu falei: quer saber? Não vou escrever mais nada de importante. Falam sempre aquelas coisas, que eu sou uma tábua etrusca, que eu sou hieróglifo, não sei o que”. Foi assim que começou a escrever textos obscenos (eróticos/pornográficos não! obscenos), daí cria a trilogia obscena composta por: “O caderno Rosa de Lori Lamby”, “Contos d’escárnio: textos grotescos ” e “Cartas de um sedutor” onde abordava vários assuntos pesados como homossexualidade e pedofilia.

Para a sua decepção, seus livros continuaram “não lidos”. E pior, foi devorada pela crítica, estraçalhada por uma sociedade conservadora e hipócrita, as editoras a abandonaram – se negavam a publicá-la…

ImagemMas, vamos ao livro. “A obscena senhora D” foi lançado em 1982 (antes de trilogia).  A obra conta a história de Hillé, uma senhora na casa dos sessenta anos que, após a morte do marido (Ehud) enlouqueceu completamente e passou a morar no vão da escada. A narrativa compõe-se justamente do seu fluxo de consciência, é escrito em primeira pessoa e não possui uma sequência lógica. Quanto mais se distancia do mundo externo, mais Hillé enlouquece. A velha senhora passa a se questionar sobre diversas coisas, pergunta-se sobre o passado, sobre a vida, sobre o amor, a dor e a morte.

O mais interessante é que Hillé não é a única narradora, ao longo do livro, outras “vozes” aparecem e dialogam com ela. E Hilst é simplesmente brilhante no que faz, afinal, o leitor consegue diferenciar os personagens facilmente. Às vezes ela conversa com Ehud, às vezes com os vizinhos (em um momento, por exemplo, ma vizinha pede que Hillé pare de aparecer nua na janela e pare de assustar as criancinhas). Quanto mais se distancia do mundo externo, mais Hillé enlouquece.

Mas, por quê senhora D? Logo no inicinho do livro ela explica o apelido que recebeu do marido: “D de derrelição, desamparo, abandono”. Assim, ela possui uma dupla personalidade, é Hillé e Senhora D ao mesmo tempo. Diversas vezes Hillé é chamada de porca pelos vizinhos e quem tenta ajudá-la recebe palavrões e xingamentos (em um momento do livro, tentam exorcizá-la!).

Assim como na maioria dos seus outros livros, em “A obscena senhora D” Hilda Hilst traz questionamentos existencialistas, analisa a relação do homem com Deus e se pergunta sobre a morte. Segundo a tese de mestrado da Cinara Leite Guimarães, esse foi um dos livros de Hilst com tradução para o francês e também é considerado um dos textos mais importantes e complexos produzidos pela autora. A autora também afirma que Hilda possuiu um grande envolvimento com o livro e com o personagem. Seu pai era escritor, não deixou uma obra marcante e acabou os seus dias em um hospício (em parte, Hilda se inspirou nele).

Referências: A obscena senhora D, de Hilda Hislt, e as relações entre Eros, Tânatos e Logos, Cinara Leite Guimarães, Universidade Federal da Paraíba, 2007.