“O fato de que eu havia me acostumado à vida na prisão chocou meus amigos e familiares, mas ninguém lá de fora pode realmente compreender o efeito galvanizador de todos aqueles rituais rígidos, sejam os oficiais ou os informais. É esse o paradoxo enganoso e cruel das longas sentenças. Para mulheres que cumprem penas de sete, doze ou vinte ano, a única maneira de sobreviver é aceitar a prisão como seu universo. Mas como elas poderiam sobreviver no mundo exterior, quando fossem libertadas?”
Fiquei feliz ao descobrir que Orange is the new black foi inspirada em um livro e mais feliz ainda, ao ler o livro e descobrir que a série possui certa fidelidade. Piper realmente existe e na narrativa conta como se envolveu, aos vinte e três anos, com uma traficante de drogas e acabou sendo presa.
Em uma sensível descrição, Piper Kerman relata em detalhes o dia-a-dia em que viveu, durante quinze meses, em uma prisão federal. Com cautela em relação aos nomes (ela muda a maioria deles), a autora explora tristes dramas pessoais e casos, alguns bem humorados, de quando se viu presa.
Logo no início, ela conta como – após se formar, em teatro – mudou-se para Massachusetts e conheceu Nora, uma mulher bem mais velha, rica e charmosa, que a levou para conhecer o mundo e a envolveu em uma série de crimes. Ao contrário do que é ilustrado na série, Nora só aparece no julgamento e a relação das duas é bem fria. Em relação ao marido, no entanto, Piper é extremamente amorosa e agradecida. (Spoiler? Larry não se envolve com a melhor amiga dela).
No livro, Piper e Red possuem uma ligação muito forte, as duas são como mãe e filha. Piper narra, inclusive, os momentos em que ia até a cela de Red só para massagear os seus pés.
O interessante é que muitos dos casos que ela conta foram retratados na série de maneira fiel, fiquei surpresa ao ver esse cuidado da produção e esse carinho, atenção, em relação aos detalhes. Ela conta, por exemplo, que chegou a dividir a cela com uma jamaicana, a “Natalie” – uma mulher séria e muito preocupada com a higiene, que não gostava de falar sobre seu passado e que as prisioneiras chamavam de macumbeira, muitas diziam que ela estava presa porque jogou água quente no rosto de uma mulher.
Ou quando falava sobre Vanessa, uma transexual que tinha o corpo muito mais bonito do que diversas mulheres: “Vanessa se viu privada dos hormônios que tomava, por isso várias características masculinas que, de outro modo, teriam ficado menos evidentes, principalmente a sua voz. Apesar de usar na maior parte do tempo uma voz aguda, bem juvenil, ela era capaz de mudar a frequência para sua estrondosa e masculina voz de Ricardão. Adorava usar isso para dar um susto terrível nas pessoas e conseguia silenciar a barulheira do refeitório gritando ‘Cala a boca, todo mundo!’!.
Como eles são na vida real?



Como de costume, selecionei algumas partes que me pareceram mais interessantes no livro e as reproduzi aqui, deem uma olhada:
Os personagens:
Sam Healy
: “O que você realmente precisa é ficar atenta com as outras detentas. Algumas delas são tranquilas. Ninguém vai mexer com você a não ser que você permita. Agora, as mulheres, elas não brigam muito. Elas falam, fazem fofoca, espalham boatos. Então, podem falar de você. Algumas dessas garotas vão pensar que você acha que é melhor do que elas. Vão dizer: Ah, ela tem dinheiro (…) E há lésbicas lá. Têm algumas, mas elas não vão incomodar você. Algumas vão tentar ser suas amigas, ou algo parecido. Fique longe delas! Entende, você não precisa fazer sexo com elas. Sou antiquado
, não aprovo nada dessas coisas esquisitas”.
“O Sr. Butorsky, meu supervisor, tinha inventado uma prática. Uma vez por semana, ele convocava todas as detentas sob sua supervisão, metade do pavilhão, para uma reunião de um minuto com ele. A gente precisava se apresentar no escritório que ele dividia com Toricella e assinar um grande livro de registro para comprovar a presença.”
Anita DeMarco e Miss Rosa: “Minhas novas colegas de cela me deixaram em paz. Às dez da noite, as luzes se apagaram de repente, e coloquei Jane Austen em cima do armário e fiquei olhando para o teto, ouvindo o aparelho respirador de Anette – ela sofrera um ataque cardíaco logo após chegar a Danbury e precisava usá-lo à noite. A Srta. Luz, quase imperceptível no outro beliche inferior, se recuperava de um tratamento contra um câncer de mama e não tinha sequer um fio de cabelo na cabeça pequenina. Eu começava a suspeitar que a coisa mais perigosa que poderia acontecer na cadeia era ficar doente.
Red: “Ela havia passado por uma vida doida fora da prisão, tendo emigrado da Rússia para os Estados Unidos aos três anos”. Ela saiu de casa aos dezoito para se casar com um gângster russo. Sua vida conjugal abarcara todo o esplendor excessivo da era das discotecas de Nova York nos anos 1970 e 1980 e vários anos fugindo da polícia.
Red: – A polícia tentou nos prender de tudo quanto é jeito, meu marido só ria. Bem, se eles querem tanto pegar você, vão conseguir. Eles nunca desistem.”
“Seu marido estava preso em algum lugar do sul do pais, e os filhos já eram crescidos. Ela perdera tudo, mas conseguiu aguentar uma dúzia de anos na cadeia sem entrar em parafuso e levava a vida da melhor maneira possível. Ela era perspicaz e exuberante. Era gentil, mas podia ser cruel. Sabia como tirar proveito do sistema e também como não se deixar ser
humilhada. Eles sempre tentavam. Os filhos crescidos de Red vinham visitá-la todas as semanas, e também vários outros parentes, murmurando em russo. A sala de visitas era o único lugar onde eu a via no uniforme cáqui padrão, o resto do tempo, ela vestia calças xadrez de cozinheira, o avental grená com Red bordado em branco no peito e uma rede nos cabelos. No entanto, para as visitas ela sempre arrumava o cabelo e se maquiava para parecer mais elegante, quase uma mocinha”.
Pennsatucky: “Allie tinha uma aliada, uma jovem do oeste da Pensilvânia, que assumia com orgulho sua condição de caipira. Eu a chamava de Pennsatucky”
“Seus dentes da frente estavam marcados pelo vício do crack – eram marrons e deteriorados e ela raramente sorria. Mas recentemente, depois de vária sessões com a dentista baixinha e alegre (a única pessoa do corpo médico de quem eu gostava e a quem julgava competente) e com Linda Vega, a presa responsável pela higiene dental, ela havia passado por uma transformação espantosa. Normalmente, os dentes eram arrancados, mas não dessa vez. Com dentes postiços imaculadamente brancos, Pennsatucky tinha virado uma garota muito bonita, e sua imitação de Jessica Simpson havia melhorado agora ela podia exibir um enorme sorriso ao fazer sua performance”.
Olhos loucos: “Uma das recém-chegadas era Morena, uma hispânica que parecia uma princesa maia ensandecida. Ensandecida não porque tivesse uma aparência geral desleixada ou alucinada. Tinha todo o jeito de alguém que sabia cumprir pena, e seu aspecto era imaculado, com uniforme bom, passado e arrumado. Porém, Morena tinha um olhar perturbador. Ela ficava encarando a gente, aqueles olhos castanhos eram incrivelmente expressivos, e seria impossível dizer que mensagem eles estavam transmitido. Era como se ela precisasse se esforçar muito para conter o que quer que estivesse se passando dentro da sua cabeça, e isso transparecia no olhar. Eu não fui a única a reparar no olhar bizarro. – Aquela ali não bate bem, disse Pop, tocando a lateral da cabeça. Cuidado”.
“Eu era rigorosamente educada e neutra, porque Olhos Loucos me deixava nervosa. Além das diversas conversas entrecortadas a caminho do trabalho, as interações dela comigo no Pavilhão aumentaram drasticamente.”

Pornstache: “Ator Pornô Gay era um sádico arrogante, com cabelo escovinha, olhos próximos e bigode denso que parecia ex-membro de uma banda cover do Village People”
Big Boo: “Big Mama era um leviatã, alegre que vivia no Dormitório A – espirituosa e ágil ao usar as palavras, benevolente e de constituição prodigiosa. Mas não esbanjava modéstia, como ficou provado pela maneira descarada com que ela seduzia uma serie de mulheres muito mais jovens e magras do que ela no seu cubículo aberto. Eu simpatizava com Big Mama e ficava fascinada com o sucesso de sua vida amorosa. Como ela conseguia? Quais eram suas técnicas? Seriam as mesmas dos homens gordos de meia-idade que queriam transar com mocinhas? Depois as garotas não a rejeitavam, nem a desrespeitavam, então tinha sido por mera curiosidade? Eu ficava curiosa, mas não tinha coragem de perguntar”.
John Bennett: “No lugar do Ator Pornô tínhamos agora o Sr. Maple, que parecia ser o exato oposto do seu antecessor. O Sr. Maple era jovem, recém-saído do serviço militar no Afeganistão, e mostrava-se exageradamente amigável e cortês. Fez sucesso instantâneo entre as mulheres do Pavilhão.”
Além da fidelidade em relação aos personagens, a série manteve diversos casos que Piper narra ao longo do livro:
“Sobre o dia das mães: Muitas mulheres haviam feito rosas vermelhas com caules longos em crochê para suas mães da prisão ou amigas. Algumas se organizaram em relacionamentos do tipo família um tanto formalizados com outras prisioneiras, sobretudo em duplas mãe-filha. Havia muitos pequenos clãs em Danburry. As mais jovens dependiam de suas mães para lhes dar conselho, atenção, comida, empréstimos na cantina, afeto, orientação e até mesmo disciplina”.
“Uma amiga da oficina elétrica tinha me ensinado a fazer um isqueiro com um pedaço plástico metalizado, duas pilhas AA, pedaços de arame de cobre e fita isolante. Mas eu podia ficar sem fumar, sem problema algum.”
“Esse ritual que eu viria a repetir centenas de vezes no decorrer do ano, nunca mudava. Tirar os sapatos, meias, blusa, calças e camiseta. Erguer o sutiã e mostrar os seios. Mostras as solas do pés. Então dar as costas para a guarda, abaixar a calcinha e se agachar. Depois, forçar uma tosse, o que teoricamente faria qualquer contrabando oculto cair no chão”.
“Eu achava tediosa a veneração religiosa de algumas vizinhas evangélicas agressivas. Algumas fiéis tinham o hábito de alardear os brados que iam orar sobre uma série de tópicos, que Deus andava ao seu lado durante o encarceramento, que Jesus amava os pecadores e assim por diante”.
Quando a Piper reclama da comida da Red (no livro, a Red se chama Pop): “Ela me encarou enfurecida e me apontou o dedo: – Escute aqui querida, sei que você acabou de chegar e que não tem a mínima noção sobre nada. Vou falar só uma vez. Existe aqui um negócio chamado “incitar revolta”, e você está falando essa merda, greve de fome, essa merda só é incitar revolta. Você pode se meter numa bela encrenca por causa disso, eles vão trancar você numa UAS, sem pensar duas vezes. Da minha parte, não estou nem aí, mas você não conhece esses caras querida. Basta que a pessoa errada escute você falando uma merda dessas e ponto, ela conta para os agentes e você vai ver com que rapidez vão trancafiar esse seu rabo numa solitária. Então fica a dica, cuidado com o que fala”
“Ao chegar a Danbury, fiquei surpresa com o fato de que, aparentemente, não havia
qualquer atividade lésbica. As celas, tão perto do posto dos guardas, eram bastiões de decoro. Não havia carícias, beijos ou qualquer ato sexual óbvio em nenhuma das áreas comuns e, apesar de alguém ter me falado de uma história de uma ex-presidiária que transformara a academia em ninho de a mor, eu sempre a encontrava vazia quando ia lá (…). Muitos relacionamentos românticos que observei mais pareciam paixões adolescentes, e um casal raramente durava mais do que um ou dois meses. Era fácil distinguir entre as mulheres que se sentiam sozinhas e queriam consolo, atenção e romance e as lésbicas de verdade: havia algumas.”
“Havia menos bulimia e mais brigas do que vira nos meus tempos de faculdade, porém existia o mesmo conjunto de valores femininos – um espírito de camaradagem e um senso de humor obsceno nos melhores dias, e melodramas histéricos acompanhados de fofocas maliciosas nos piores”.
“Dezesseis de setembro foi o dia da Feira de Emprego na prisão, um evento anual de fachada organizado pela ICF de Danbury que teoricamente abordava o fato de que as pessoas teriam de reingressar no mundo exterior. Até então eu não havia testemunhado qualquer esforço significativo de preparar as presidiárias para um retorno bem-sucedido à sociedade, com exceção das mulheres que passaram pelo programa intensivo de tratamento contra a dependência química (…) Várias empresas haviam se comprometido a participar do evento, muitas delas entidades sem fins lucrativos.
(…) Como se vestir para o trabalho? Como se vestir’ era organizada pela Dress for Success, uma entidade sem fins lucrativos que ajuda mulheres a conseguir roupas apropriadas para o local de trabalho. Uma jovial mulher de meia idade nos explicou os erros e acertos do momento de escolher a roupa para um entrevista de emprego e solicitou voluntárias.
“Eu conhecia uma mulher lá embaixo… Uma baixinha, bem quieta, ficava na dela, não incomodava ninguém. Ela estava cumprindo prisão perpétua. Ela trabalhava, andava na linha, ia para a cama cedo, e só. Aí uma garota apareceu lá, essa garota era um problema. Ela começou a encher o saco da baixinha, ficava sacaneando, perturbando o tempo inteiro. Era uma garota muito idiota. Bom, essa baixinha que nunca causou problemas a ninguém, enfiou dois cadeados em uma meia e mandou ver na garota. Nunca vi nada parecido antes, aquela garota ficou mal, sangue por todo o lado, se ferrou.”
“A lição que nosso sistema prisional ensina a seus residentes é como sobreviver como um prisioneiro, não como um cidadão – o que não constitui uma estrutura de conhecimento muito construtivo para nós ou para as comunidades às quais retornamos”