O óbvio ululante

nelsonEu não sei se acredito em destino, mas desde cedo me vi predestinada a cursar Jornalismo ou qualquer outra área que estivesse ligada ao ato de escrever. Entrei na faculdade aos dezoito anos, fiz as minhas escolhas diante de um impulso e da necessidade de decidir minha carreira por causa do vestibular.

Desinformada e repleta de ilusões, segui acreditando que a universidade me tornaria uma profissional completa, pronta para o mercado de trabalho. Eu não sabia de nada, entrei na universidade sem um pingo de conhecimento ou de maldade sobre a vida acadêmica. Eu me sentia como uma caipira na cidade grande – e assim foi, por quase três anos de curso, até que eu finalmente me localizei.

Os primeiros anos foram terrivelmente difíceis. Comecei a estudar em uma universidade particular (cara, como outra qualquer) onde os professores, de repente, entraram em greve. Pagávamos a mensalidade, mas não tínhamos aula. Decidi largar aquela universidade, pular para outra. Me vi em um redemoinho de novidades, de matérias, de grades, de horários, de pessoas novas (e que já se conheciam). Me senti naqueles filmes juvenis, quando os pais do personagem principal mudam de casa e ele é obrigado a ir para uma nova escola.

Era uma caxias. Comprei vários livros que os professores apresentaram como referência (mas que, de fato, nunca usavam nas aulas). Foi aí que conheci Nelson Rodrigues. Na minha solidão de aluna nova, pouco popular e irregular (porque ainda tinha esse agravante, eu fazia matérias diferentes em várias salas), me agarrei em Rodrigues como um religioso se agarra em um santo.

Bom, eu não via Nelson Rodrigues como um santo, mas como um ideal.  Eu queria ser como Nelson Rodrigues, queria escrever como ele. Jamais me aproximei ou me aproximaria da sua genialidade, mas de qualquer forma, alimentei uma admiração que me ajudou a não só a ter coragem para seguir o meu curso (esqueci desse detalhe: na época, explodiu a notícia de que para ser jornalista não precisava de diploma) como também a amar a minha profissão.

Lembro, como se fosse hoje, dos dias em que tinha algum horário vago e ia para biblioteca para ler Nelson Rodrigues.  O primeiro livro que li foi “O óbvio ululante” e até hoje é o meu favorito.  Na verdade, eu não sei expressar o que eu sentia quando lia Nelson Rodrigues – naquela época, era como se ele estivesse conversando comigo, me convidando a entrar em seu universo, contanto suas histórias no meu ouvido. Me fazendo um convite a transgressão. Confesso que até o imaginava, sentando em sua mesa, batendo forte com os dedos em um máquina de escrever, fumando ou tomando café.

Em “O óbvio ululante” Nelson Rodrigues é genial até no título. Ululante, quer dizer grito, berro…

Através de suas crônicas Nelson me cativou, não sei eleger qual é a melhor. Fiquei marcada por diversas histórias narradas, mas uma em especial. Nelson conta que quando menino, se apaixonou por uma jovem e que sempre ia até a casa para observá-la na janela. Mas essa menina, que era gordinha, tinha namorado e mais do que isso, tinha um pai muito bravo. Um dia o namorado dessa jovem, que tinha tuberculose, afastou-se dela por causa do pai. Nelson, que estava passava pela rua, presenciou quando a jovem teve uma discussão séria com a família… dias depois ele voltou na rua e sentiu um cheiro terrível, de carne queimada e gordura. A menina, por causa da desilusão amorosa, tinha colocado fogo no próprio corpo.

Ok, eu estraguei a história… Mas ela esta disponibilizada online e faço um convite para lê-la: “Lili ardeu como uma estrela”.

Além das histórias, Nelson não se censurava em suas críticas, muitas ainda hoje sensatas: “O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: – eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco.”

Lembro também que me surpreendi, quando em uma de suas crônicas, Nelson conta como conheceu Joan Crawford. A atriz estava no Rio de Janeiro, veio para fazer uma campanha publicitária para a Pepsi. Nelson contava que Joan estava suando demais e que sua maquiagem derreteu e formou uma poça sua boca. Os jornalistas foram ferozes com ela, criticavam a sua velhice e diziam que ela não era bonita como antes. Não tenho o livro em casa, mas graças a internet, encontrei a crônica digitalizada:

“Ontem Roberto Marinho observava que a nossa imprensa fora uma anfitriã crudelíssima da atriz. Sim, os nossos jornais a receberam com uma impiedade total. Cada fotografia ou cada texto era uma acusação. Joan Crawford era acusada e de que, meu Deus? Despedi-me de Roberto Marinho e aquilo não me saía da cabeça. Cheguei em casa e ainda pensava em Joan Crawford. A estrela era acusada de ter envelhecido. Não ocorreu a ninguém esta concessão apiedada: — “Bonita coroa”. Nem isso. Ninguém aceita a velha nobre, a velha linda. É pena que eu não tenha, de momento, os recortes de tudo que se escreveu sobre a sua visita. Essa crueldade impressa dá o que pensar. Lembro-me de que, em 1927, vi Joan Crawford num filme da opereta  Rose  Marie. Nada se compara ao impacto tão puro e tão firme de sua aparição. Eu disse 1927 e façam as contas. Quarenta e um anos são passados. E Joan Crawford já era uma das mais lindas mulheres do mundo. Voltei cinco, seis, dez, quinze vezes ao cinema. Uma paixão se instalara em mim. Mas não fui eu o único.

A platéia de cada dia saía apaixonada. Quase meio século depois, a atriz vem ao Rio. Sua imagem não é  mais um jogo de sombra e de luz. Saiu da tela, baixou na vida real. E começa o massacre nos jornais, no rádio e na televisão. Nós a olhamos como a uma ré e não foi outra coisa senão isso mesmo. Até os velhos a detestaram. (Eis a verdade: — a começar pelo dr. Alceu, o nosso velho atual não gosta de outro velho.) Quando Joan Crawford visitou a Assembléia Legislativa, quis eu ser testemunha do acontecimento. Fazia um calor que, segundo minhas crônicas esportivas, derrete catedrais. Eu via em todos os olhares uma fria malignidade. E foi uma euforia geral quando, por efeito do calor, a maquiagem da atriz entrou em decomposição. A pintura derretida escorria em gotas cromáticas. Uma gota parou, exatamente, na ponta do nariz e aí ficou, dependurada, antes de se estilhaçar. É claro que todo mundo deseja, com o maior empenho e a maior volúpia, a velhice da mulher bonita. Outro exemplo: — o de Gina Lollobrigida. Passou pelo nosso carnaval, linda, linda. Pois não faltou quem, diante do seu frescor implacável, dissesse: — “Velha! Velha!”.

Voltando a Joan Crawford na Assembléia Legislativa. Houve um instante em que se percebeu, por cima do seu lábio superior, uma orla de suor. Um sujeito cutucou-me para cochichar: — “Transpira!”. E piscou o olho, numa satisfação crudelíssima. As mulheres bonitas. Queremos envelhecê-las e agora mais do que nunca e aqui mais do que nos outros povos. Na França ou na Alemanha a mulher bonita ilustre não envelhece. E os homens velhos e ilustres. Maurice Chevalier, aos oitenta anos, trôpego e asmático, é amado por todo um povo. No Rio de nossos dias, Mistinguett seria apedrejada como uma bruxa de disco infantil. Joan Crawford passou por aqui e nem sei como sobreviveu à nossa impiedade.”