Nos desenhos e animações que eu assistia quando criança, os vilões cumpriam apenas um papel = atrapalhavam a vida dos mocinhos. As bruxas eram assustadoras, implacáveis, não perdoavam. E ao mesmo tempo, tinham um ar misterioso e sensual, que acentuavam o aspecto de terror. Como, por exemplo, a Bruxa da Branca de Neve, que a meu ver era muito mais bonita do que a princesa.
Nunca fui muito fã de animações (como aquelas clássicas da Disney). E tenho uma justificativa para isso. Eu mergulhava nas histórias, me acabava nos universos mágicos, me entregava. Sentia emoções muito fortes e ficava melancólica como aquelas histórias. Era uma melancolia sincera, que surgia com naturalidade e permanecia. (Acho que isso é bem característico das crianças, da infância, pelo menos foi da minha.).
Só agora, escrevendo esse texto é que me dou conta da visão que tinha sobre os desenhos. Não sei se é por personalidade, ou qualquer outra coisa, mas quando penso em desenhos tenho a tendência a lembrar das partes mais tristes. Pra mim, Bambi era uma verdadeira tragédia e quando penso nessa animação, me lembro da cena da morte da mãe ou da cena em que ele se perdia na floresta. O Rei Leão? Lembro da cena em que ele perde o pai. Cinderela? Correndo nas escadas e perdendo os sapatos. A Bela e a Fera? A rosa perde a sua última pétala…
Um dia, quem sabe, eu consiga descobrir o porque dessas memórias e talvez, o sentido delas.Tenho uma amiga que é apaixonada por princesas. Gosta tanto que esse será o tema da sua monografia. E eu, me esforcei para identificar pelo menos uma princesa que tenha gostado quando criança. Me lembrei de Anastasia, o único desenho que vi e revi milhões de vezes, sem ter aquele sentimento melancólico. Apesar que Rasputin, o vilão, me causava medo – medo de verdade.
O desenho despertava meus sonhos sobre a possibilidade de ser corajosa, independente e ao mesmo tempo, linda e feminina. Afinal, qual garota nunca sonhou em usar um vestido de princesa? Anastasia era corajosa e simples, tinha uma essência diferente das outras, acho que por isso me encantava tanto… Anos depois fui descobrir que a história se baseava em fatos reais.
Pois bem, depois de tanto tempo sem ver animações e depois de relutar muito, assisti Malévola. Achei o filme lindíssimo – visualmente incrível e com uma história de tirar o fôlego. Feito por encomenda para Angelina Jolie. Acho que relutei, porque como disse no inicio do texto, sempre alimentei aquela “antiga” ideia de que vilão é vilão, e pronto. Revendo algumas animações, como o sucesso “Frozen” e “Shrek” fiquei admirada com a capacidade de desconstrução que esses filmes tem apresentado e acho que as crianças tem muito a ganhar.
Em Malévola a vilã também é mocinha, em Shrek a princesa é feia e em Frozen, a princesa aprende que não deve se casar com o primeiro homem que conhece. É um avanço, sem dúvidas, ainda que a estética midiática esteja fincada em preceitos antigos, os personagens estão cada vez menos maniqueístas, assim como é a vida, como são todos os seres humanos…
Sem querer, eu acabei criando um ciclo de publicações onde falo sobre as minhas atrizes mexicanas favoritas. Por que mexicanas? Não sei, ando mergulhada nessa fase. Não poderia deixar de falar da Diana Bracho, não mesmo. Diana está em outro patamar, é como se fosse uma “Meryl Streep Mexicana”, uma Fernanda Montenegro, entende? Bracho possui uma carreira fincada no cinema, mas é plural e tem trabalhos televisivos, teatrais e literários incríveis.
Diana vem de uma família artística, seu pai Julio Bracho era apresentador e diretor. Ele, filho de um músico e de uma miss e sobrinho de ninguém mais ninguém menos que Andrea Palma. Ah, e Diana também é parente distante de Dolores del Río e Ramon Novarro. Seu irmão, Julio, também é ator. Pode? Em entrevistas ela conta que durante a infância foi um pouco “sufocada” pelo pai, era uma menina rica que tinha um motorista e empregados disponíveis para ela o tempo inteiro e começou a atuar, muito novinha.
“Yo le agradezco a la vida haber estado fuera de los márgenes de la convención porque esto me ha dado una libertad de movimiento por todo el mundo, con una gran apertura a lo que me vaya tocando, me siento igual de a gusto comer unos tacos en una esquina que comer en un restaurante de París, porque sé quién soy y estoy a gusto conmigo misma.”
Antes de estrelar “El Castillo de la Pureza” (filme reconhecido internacionalmente e dirigido por Arturo Ripstein), cursou Letras em New Rochelle (NY) e até hoje, se dedica a literatura. Sim, Diana possui várias faces. Entre 2002 e 2006 foi presidente da Academia Mexicana de Artes y Ciências Cinematográficas. Recentemente deu uma entrevista ao El País, onde dizia “Amo as minhas rugas” e, diferente de muitas atrizes em sua idade, defende uma estética mais natural. Só pra constar, ela vai completar 70 anos em dezembro.
“Entiendo que el tiempo pasa, la edad no es fácil de aceptar o enfrentar, sobre todo en las mujeres porque de pronto te juzgan y dicen si una ya dio el ‘viejazo’. No quiero hacer juicios sobre las operaciones estéticas, pero he visto que incluso se las hacen personas muy jóvenes que pienso que no las necesitan. Yo soy como soy y no me voy a pelear con la persona que soy, porque me he construido a través de la vida tratando de ser una persona íntegra que ama su trabajo y yo amo la cara que tengo, con sus arrugas y con la edad.”
Eu realmente não me lembro da primeira novela que vi com ela. É com se Diana Bracho sempre estivesse ali. Sei que ela ficou muito conhecida no Brasil depois que o SBT transmitiu a novela Ambição (Cuna de Lobos) e que na primeira fase de “O Privilégio de Amar”, ela interpretou a versão jovem da Dona Ana Joaquina, posteriormente interpretada por Marga Lopez. Mas ela teve trabalhos muito marcantes como “El Derecho de Nacer”, “Pasion y poder” e “Capricho”.
Como disse, acompanho a Diana há muito tempo e acho que perdi a conta de quantos filmes e novelas assisti com ela. (Já comentei sobre muitos aqui no La Amora). Da Diana, três novelas me marcaram em especial.
1) Bajo la Misma Piel: Essa é a primeira e única novela em que me lembro da Diana interpretando uma “mocinha”. A trama se concentra na história de quatro mulheres da mesma família e de gerações diferentes. Diana interpreta Sarah, uma mulher frágil e sensível, casada com Bruno, um homem arrogante. No passado, Sarah se apaixonou por Joaquim, mas com o tempo, cada um tomou um rumo diferente. Sarah vive sofrendo com os abusos do marido e se irrita com os assédios por parte de Rodrigo, um antigo amigo da família.
Nessa novela, Diana está diferente de tudo o que eu já vi, um personagem denso e muito importante para a carreira dela, que tem um posicionamento de defesa pelos direitos da mulher. Na trama, Sarah é estuprada pelo próprio marido e agredida fisicamente. Existe uma cena fortíssima, que me marcou mundo. O marido da Sarah acaba de descobrir que é estéril e que os dois filhos que criou com ela, não são seus. A cena, aliás é inesquecível, nunca vi nada igual em novela nenhuma. Sarah leva socos e pontapés de Bruno no meio da rua e fica com a cara ensanguentada, é chocante (é a primeira cena do vídeo, é só dar play):
2) Heridas de Amor: Bertha de Aragón era um verdadeiro furacão. No início da novela era uma mulher que alimentava um amor secreto pelo marido da irmã e que, no passado, tinha entregado a filha para adoção. Usava roupas e tinha um comportamento de beata e infernizava a vida da sobrinha. Um dia Bertha faz uma viagem e volta completamente diferente, com roupas sensuais e com um comportamento agressivo. Me lembra um pouco a história de “Now Voyager”, com Bette Davis.
Quando volta, Bertha se apaixona por César e tem um caso de amor bandido, onde juntos planejam um golpe. O personagem interpretado por Diana ficou muito famoso e conquistou o público. Na época, Diana precisou fazer umas viagens e se afastar da novela e quando ela saiu de cena, a audiência despencou. A novela foi transmitida no SBT e ficou bem famosa por aqui.
Bertha era um personagem incrível, quase uma Nazaré Tedesco. Era muito engraçado a sua mania de chupar pirulito quando ficava nervosa ou coçar a testa. Ela tinha um cachorro que era a sua paixão e sempre o usava para assustar os outros. O fim da Bertha foi uma das coisas mais malucas e estranhas que eu já vi. Ela tinha um empregado (que por sinal, tinha um aspecto grotesco, uma mão defeituosa e se chamava “El guapo”, em tradução meio fula e literal seria “O Bonito”) que a amava. Um dia ele a sequestra e corta seus dedos no intuito de fazê-la ter “medo”.
Como aquele filme, “O Perfume”, o cara queria roubar a essência, o cheiro de medo dela. Difícil explicar. O fim da vilã não poderia ficar mais tenebroso se o cara não a tivesse levado para um “ilha” cheio de bonecas velhas e horrorosas, a prendido e a amordaçado e por fim, suicidado. Bertha termina presa, longe de tudo e de todos, sem os dedos e ao lado de um cadáver.
3) Fuego en la sangre: Mais uma vez Diana interpreta um vilã, Gabriela Santibañez. Mas o tom dela é diferente dos outros, ela é a mãe das três personagens principais e além de controladora e ortodoxa, é extremamente cruel com o marido (idoso e deficiente). Gabriela foi um personagem mais erótico e teve uma relação extraconjugal com Fernando e fisicamente mais violenta do que os outros, sempre saía distribuindo tapas nos outros.
Uma das coisas que me faz adorar a novela é que María Sorté e Diana Bracho atuam juntas, praticamente o tempo inteiro. Adoro quando as minhas atrizes contracenam, como por exemplo em Cadenas de Armargura, em que ela e a Helena Rojo interpretam irmãs inimigas (ou em La Tempestad, em que Daniela Romo e María Sorté atuam juntas ou em Amor Sin Maquilaje em que Daniela e Helena Rojo contracenam…). Como não poderia ser diferente, o fim da Gabriela é uma coisa absurdamente assustadora. Por um engano, ela acaba sendo enterrada viva!
Cuba Libre?
Como disse, Diana participou de muitos filmes, alguns grandiosos e reconhecidos internacionalmente. “Cuba Libre” ou Dreaming of Julia é um deles, onde ela, ao lado de Gael García Bernal e Harney Keitel estrelam uma deliciosa e nostálgica história que tem como pano de fundo a Revolução Cubana. O caso é que muito tempo depois do lançamento do filme, Diana chegou a confidenciar que foi muito mal tratada por Keitel e que jamais trabalharia com ele novamente. Ela contou que, nos bastidores, ele sempre fazia um discurso contra atores latinos e mal mal queria encostar nela para fazer as cenas – e, os dois eram um casal!
Atualmente, Diana revive a peça “Master Class Maria Callas”. Quando foi encenada pela primeira vez, a obra foi um grande êxito e marco em sua carreira. Ela, que nunca gostou de repetir personagens, se une novamente a Diego del Río e Morris Gilbert (depois de quinze anos!) para representar Callas.
Ando pensando em fazer um nova tatuagem, ainda não resolvi nada, apenas uma ideia. Fiz uma pesquisa na internet e encontrei uma mais linda que a outra. Quando eu fizer uma nova, quero algo pequeno, discreto…
Se me perguntassem se aquele ato performático em que uma mulher engole e depois vomita tinta em Lady Gaga é arte eu não saberia responder. Afinal, o que é arte? Se me perguntassem se uma música de Valesca Popozuda tem menos ou mais valor cultural do que uma erudita, eu não saberia responder. Afinal, quem define esses valores tão subjetivos?
Outro dia fui convidada para participar de um encontro de poetas. Pessoas que amam literatura e que dedicam horas de seus dias lendo e escrevendo. O evento era aberto, o povo foi convidado. Na plateia, escritores, e no palco também. O povo não foi.
O homem que abriu o evento conversava diretamente com o público (os escritores) e dizia: “Nós temos o privilégio dos loucos!” Eles, aplaudiam. Quando permitiu que os outros subissem no palco, advertiu: “Todo mundo quer ler e mostrar seu trabalho. Sejam breves e deem espaço ao outro’. Seguiram-se as apresentações, algumas cômicas, outras faziam uma ode à infância, algumas falavam da historia da cidade… Liam, se apresentavam e se aplaudiam.
Saí me perguntando se aquela reunião era, de fato, um encontro artístico ou se aquelas pessoas eram apenas narcisistas. Não sei como funciona essa relação do poeta ou do escritor com sua obra, se ele precisa que alguém o leia e o aplauda. Realmente não sei. E também continuo sem uma definição para arte – a minha tendência é acreditar que a arte é algo que toca no coração das pessoas, que as faz chorar ou rir, que as questiona… não me importa, juro que não me importa se seja através da Valesca Popozuda ou de Vivaldi.
Tenho um lugar separado, onde guardo os meus filmes preferidos. “Perras”, produzido em 2011 e dirigido por Guillermo Ríos é um deles. O assisti muito antes de me interessar pelo cinema mexicano e não sei por que, demorei tanto para citá-lo aqui. É um filme magnífico e me incomoda o fato de tão poucos conhecê-lo. Rios, cheio de recursos primorosos, conta a história de um grupo de garotas problemáticas que estudam no mesmo colégio e que foram trancadas na sala de aula pela diretora, depois que um crime horrível foi cometido. Todas são suspeitas. Diferente e ácido, “Perras” é o típico filme que emociona, surpreende e que consegue retratar a história de cada personagem (e olha, são muitos) com cuidado e densidade. Aos poucos, vamos conhecendo a trajetória de cada menina e recebendo ‘dicas’ sobre o crime. Difícil não se identificar com a história de cada uma delas e não se simpatizar com seus dramas. As alunas possuem classes sociais diferentes e a maioria dos confrontos (e dos jogos de interesse) se dão por causa desse aspecto.
María del Mar (Claudia Zepeta) é a personagem principal, que narra os acontecimentos e contextualiza os espectadores sobre o que se passa. É uma garota tímida e introspectiva, que a primeiro momento nos faz acreditar que não deveria estar ali, junto com as outras meninas – ‘problemáticas’. Aos poucos descobrimos que ela se envolveu com um homem mais velho e casado e que sua relação causou grandes problemas em sua roda familiar.
“Se supone que tus padres son los que más a fondo te conocen. Pero no es verdad. Las cosas mas importantes que se han pasado en la vida ellos no lo saben”
Com o decorrer da trama, as vozes narrativas vão se mesclando e todas as meninas passam a contar sua versão. Tora, por exemplo, é uma garota gorda com uma deficiência na perna, que sonha em fazer uma festa de quinze anos – mas que não tem condições financeiras e que também não tem quem convidar. Sofia é a patricinha da sala, rica e metida a líder – que no fundo, sofre com a indiferença dos pais. Andrea vive um mundo de ilusão e de abandono, em que espera receber um pouco de atenção da mãe, Alejandra é corajosa e alternativa, cujo os pais não aceitam a homossexualidade.
Como um quebra cabeça, todas as peças vão se unindo e é difícil não se surpreender com o final. “Perras”, definitivamente não é um filme juvenil, pelo contrário – é um filme que causa repulsa. Assuntos pesados são abordados com certa naturalidade: aborto, prostituição, assédio… Aliás, os diálogos são densos, sarcásticos e marcantes. A narrativa também é marcada por flashbacks .
Nunsploitation é um termo que eu desconhecia, até a semana passada quando passeando pelo 101 Horror Movies, me deparei com a sinopse de “A Freira Assassina”. Em suma, nunsploitation é um subgênero do estilo exploitation, que se adéqua a filmes de conteúdos ousados, que envolvem sexo e violência. Apesar de muitas críticas ruins, não resisti a baixar e assistir o filme italiano de Giulio Berrut, que traz ninguém menos que Anita Ekberg como personagem principal. Eu, pouco entendedora do assunto, confesso que achei o filme genial.
Para quem não se lembra, Ekberg é uma das musas de Fellini – aquela que em um vestido de festa, se banha na fonte da Fontana di Trevi. Em “A Freira Assassina”, Ekberg encarna a Irmã Gertrude, uma das coordenadoras de um hospital (que também funciona como asilo/hospício). Gertrude se recuperou de um tumor no cérebro e desde então apresenta transtornos psicossomáticos, blecautes e vício em morfina. Completamente saudável, Gertrude acredita que está doente. Sua loucura aumenta quando assassinatos misteriosos começam a acontecer no hospital e todos acreditam que ela é a responsável.
Sadismo, eis a palavra. E também podemos adicionar loucura, profanação e lesbianismo. Quando Gertrude começa a perder o senso, ela passa a cometer atrocidades contra os pacientes, mergulhando em uma série de enganos e confusões mentais. Em uma cena, por exemplo, ela humilha uma paciente idosa e com problemas cardíacos, quebrando sua dentadura na frente de todos, na mesa de jantar. No mesmo dia, a paciente morre. Gertrude, pouco arrependida, rouba um de seus anéis para comprar morfina e, claro, aproveita para sair do hospital, tirar o hábito e fazer sexo com estranhos.
Não fosse o bastante, Gertrude repara nas insinuações da sua companheira de quarto, Irmã Mathieu (Paola Morra) e começa a ter uma relação amorosa (e doentia) com ela. Escondidas pelo hábito, nenhuma das duas pode revelar os desejos que sentem. Mathieu, a única amiga de Gertrude, faz de tudo para apoiá-la e para impedir que ela seja incriminada. E, Mathieu também tem seu lado erótico explorado, sendo responsável pelas cenas mais quentes do filme. Gosto especialmente do momento em que Gertrude toma morfina e começa a ter alucinações, misturando as memórias da cirurgia, com cenas de assassinato e de sexo. Ainda que não de maneira linear, recebemos algumas pistas sobre o mistério que envolve os crimes. Também gosto de uma cena, em que Gertrude, na chuva, vê dois pacientes transando no jardim do hotel e o diretor, dá um close demorado em seus olhos e em sua boca.
O filme também está repleto de cenas grotescas, como o momento em que uma das pacientes é assassinada – mas antes, agulhas são perfuradas em seu rosto. Ou quando Gertrude, em alucinação, vê a própria cabeça ser aberta para cirurgia.
Li Kafka pela primeira vez quando estava no ensino médio. A história de um homem que se transformava em um inseto pouco me surpreendeu. Por ignorância, por não saber da importância histórica da obra, dei pouco valor a narrativa. Depois, quando já estava quase no fim da faculdade, reli o livro com mais cuidado e me surpreendi com um mundo de sentidos (principalmente em relação às criticas sociais) que estavam “escondidas” na narrativa.
Descobri “Carta ao pai” também quando estava na faculdade, quando uma querida colega de sala de aula andava para cima e para baixo com o livro nos braços. A curiosidade sobre o que Kafka teria a dizer sobre o pai sempre foi latente, mas só agora tive a oportunidade de ler este livro.
Kafka escreveu a carta em 1919, aos 36 anos (cinco anos antes de morrer). Nessa época já tinha publicado “A metamorfose” e “O processo” e estava hospedado em uma pensão em Praga com o intuito de fazer um tratamento de saúde. De acordo com Modesto Carone (o autor do posfácio do livro que li): ‘O pretexto imediato para a elaboração da carta foi uma pergunta feita pouco tempo antes por Hermann Kafka, que queria saber por que o filho afirmava ter medo dele. Um dos motivos da carta foi certamente o estremecimento das relações entre pai e filho após a tentativa (logo abandonada) de casamento de Kafka com Julie Wohryzek.
Kafka demonstra muito rancor em relação as atitudes do pai e evidencia o quanto a sua personalidade “tirana” influenciou para que ele fosse um homem introspectivo e inseguro. Em um momento da carta, o autor conta que seu pai tinha o costume de deixá-lo de castigo na varanda (no escuro e no frio) – e que ele morria de medo e esperava que alguém pudesse ajudá-lo. Ele também descreve a personalidade de sua mãe, como sendo uma mulher bondosa, porém serviçal.
Sobre o pai, outra coisa parece incomodá-lo muito: a forma com que ele destratava as pessoas. Kafka era obrigado a ajudar o pai em sua loja e ficava extremamente envergonhado quando o pai humilhava os funcionários e o ensinava a fazer igual. Tímido, Kafka não tinha vontade de ser vendedor, mas era obrigado a passar os dias atrás do balcão.
Sentada em sua sala de estudos (o cômodo preferido da casa), Mercedes começou a observar o grande mapa mundi que tomava conta da parede. Vários países tinham uma marca vermelha. Foi ela mesmo que marcou, só para se nortear sobre quais tinha estudado a história. Ela nunca pisou em nenhum lugar fora da sua cidade, mas conhecia praticamente o mundo inteiro pelos livros e pela internet.
Naquele momento, Mercedes estava silenciosa e enquanto observava feito uma criança o mapa na parede, se lembrava de que durante a adolescência tinha prometido para si mesma que seria uma mulher corajosa e que não iria fazer como as outras pessoas, se prenderem em um quarto e viver uma vida medíocre em frente a TV.
Agora a realidade era outra, a vida era muito mais difícil do que ela imaginava e naquele ponto, sentia que tinha se traído. Que tinha jogado o seu futuro fora, afinal, o quê a prendia? As contas? O marido? Os filhos?
– Covarde! – pensou. E logo depois levou as mãos à boca, tentando impedir que a voz que dentro dela queria gritar, saísse.
Há um longo tempo não ficava sozinha em casa, há um longo tempo não prestava atenção em si mesma. Deitou-se no sofá, naquele velho sofá cheio de almofadas e se imaginou sentada num banco em Cuernavaca. E todas aquelas pessoas passavam por ela, sem perceber seu deslumbramento. Mercedes ficou ali por alguns minutos e resolveu mudar. Agora estava em um café, antipatizada com a garçonete parisiense que tinha sido pouco simpática com o cliente. Passando pelas ruas londrinas, lembrava que sua tia tinha razão quando dizia que tudo era limpíssimo.
“Toc toc”
Mercedes estava novamente na sala, se lamentando: “Mas ainda não fui ao Japão…”
– Mãe!
– O jantar está pronto?
Mercedes se levantou calmamente, preparou um sorriso e saiu do quarto dos estudos, como se nada tivesse acontecido. Beijou o marido, ouviu sobre o dia escolar das meninas, serviu o jantar, arrumou a cozinha e exausta, sentou-se na frente da TV para descansar.