Dando continuidade à publicação sobre o livro escrito por Erico Veríssimo, México, vamos às citações:
“Quem quer que haja vivido um pouco, deve ter concluído que, assim como existem corpos predispostos à tuberculose, há almas predispostas ao amor. No primeiro caso basta um golpe de vento. No segundo, uma simples troca de olhares.”
‘Esse país americano, conquistado e colonizado por espanhóis, com uma tremenda percentagem de sangue índio, já teve um imperador austríaco e uma corte francesa.”
“Uma cena me ficou na memória com uma nitidez inapagável. Parados no meio-fio duma calçada, no Paseo de la Reforma, vejo passar o enterro de um bombeiro que se suicidou. Os tambores, cobertos de crepe, estão abafados e soam surdos. Não se ouve seques um toque de clarim. Atrás dos tambores marcham alguns pelotões. Os solados, de uniforme negro, gola carmesim, crepe no braço, marcham em cadenciado silêncio. E sobre um carro também coberto de preto está o esquife cinzento envolto na bandeira mexicana. Pla-ra-ta-plan! Pla-ra-ta-plan! Lá se vai o cortejo rumo do cemitério. Haverá outro país no mundo em que um velório seja mais velório, um enterro mais enterro, e a morte mais a morte?”
“Agora o cantor grisalho, ventrudo e cinquentão diz que não vale nada, pois chorando a vida começa e em choro a vida se acaba.”
(Sobre o Barroco Mexicano): “Se os índios fossem capazes de expressão literária, seu protesto escrito teria encontrado pela frente a barreira formidável da Inquisição. Povo plástico por excelência, o mexicano achou sua forma de expressão na arquitetura e na escultura. Mas não teriam os frades percebido a silenciosa, sutil reação? Acho que perceberam e que não só toleraram como também sabiamente encorajaram essas inocentes heresias, como parte de sua técnica de catolização do gentio. Essa “tolerância” continuou através do tempo e culminou na aceitação por parte da Igreja da Nossa Senhora de Guadalupe, a Virgem índia. É aqui em Puebla que se encontram os melhores espécimes do barroco mexicano, do churrigueresco e do plateresco.”
“Minha companheira declara-se fascinada pela sonoridade de alguns nomes mexicanos.Guadalajara…Jalisco…Cuernavaca…Acapulco…Querétaro…Churubusco, Chapingo…Hermosill…Manzanillo…Polanco…Xoxhimilco.”
“Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, de modo que inventou a semana. Para passar o weekend não sabemos como se arranjou. Agora, segundo dizem, passa o fim de semana em Cuernavaca, que possui um clima privilegiado. Alguns habitantes do México e alguns visitantes do país vizinho são da mesma opinião de Deus.”
(O Povo): “O México é uma nação em que predomina o sangue índio. Cerca de 30% de seus habitantes são racial e culturalmente índios. A menor parte da população, uns 10%, é formada de brancos (sempre escrevo essa palavra com dúvidas e reservas), de criollos, isto é, de filhos de pais e mães espanhóis mas nascidos no México, e de um bom número de pessoas oriundas de vários países europeus e dos Estados Unidos. Os 60% restantes são mestiços. O índio é o elemento passivo da população, constitui uma espécie de silencioso, imóvel coro da tragédia nacional. Sua capacidade de apagar-se não é apenas psicológica ou sociológica, mas também física, pois por um curioso mimetismo defensivo, como o de certos animais, o índio mexicano como que consegue diluir-se na paisagem.

Os 10% que são ou se consideram brancos vivem e pensam mais ou menos como os brancos de qualquer outro país da América e, seus dramas e neuroses não vêm, acredito, do fato de serem mexicanos, mas sim de pertencerem a uma determinada classe social e viverem neste século e nesta hora. Assim, o que na minha opinião melhor representa o México, isto é, o de sangue espanhol de índio, não só porque ele constitui a maioria da população, mas também e principalmente porque dá a nota tônica na vida do país. Compreendê-lo, portanto, será compreender o México.
(A língua): Se o espanhol da zona das Caraíbas tem a doçura e a consistência do melado, o que se fala no México é igualmente fluído e doce, embora muito mais claro. É um castelhano com mel e uma pitadinha de Chile. Quem quer que tenha ouvido Cantiflas terá uma ideia da fala do mexicano, do povo, com sua entonação musical, sua abundancia de diminutivos, a sua qualidade pirotécnica, e a ênfase em certas vogais.
O que mais me encanta na língua mexicana são os diminutivos, a coisa que o forasteiro menos espera encontrar em boca duma gente com tanta capacidade para a violência e tão pouca inclinação para a ternura. Muitas vezes parei na rua para escutar furtivamente diálogos de gente do povo. Vamos agora imaginar uma rápida conversa entre dois pelados numa pulquería:
-Quieres um poço de tequila, amiguito?
-Sí.
-Cuanto?
– Un naditita.
-Un tantito así?
-Eso, gracias hermanito!
– Cuando vuelves a tu casa?
-Lueguito, y tu?
– Nochecita, no más.
Para Veríssimo o Mexicano é um ser angustiado:
-Se você tivesse de fazer a psicanálise do povo mexicano, como explicaria essa sensação angustiosa de insegurança e inquietante em que ele parece viver? (…)
– Por causa de um trauma de nascimento que marcou fundamente o inconsciente coletivo deste país, deve ser o responsável por essa neurose de angustia que domina o povo mexicano.
– E como se caracteriza essa angústia?
-Por uma sensação aflitiva de que algo de mau, algo de terrível está sempre por acontecer. O nascimento da nação mexicana foi difícil, dilacerante, sangrento, doloroso.
– E como se portou o recém-nascido?
– O índio que sobreviveu à Conquista não se adaptou ao ambiente frio e hostil criado pelo invasor: desejou voltar ao ventre materno, isto é , à terra.
(Morte): No México a morte é uma espécie de concumbina, uma companheira que cada homem carrega consigo por toda a parte e todas as horas. O mexicano exibe sua morte como efeito, uma joia. Diante vem essa atitude diante a morte? Do espanhol não é, porque este, embora tenha seus namoros com a Parca, não a vê sem temor e não deixa nunca de encará-la como um símbolo de aniquilamento, a despeito de seu catolicismo. Acho que o mexicano deve essa tendência ao componente de índio de seu caráter. Para o índio pré-cortesiano, o além-túmulo não prometia torturas ou castigos. Os astecas aceitavam a ideia da imortalidade,. Para eles a força vital continuava depois da morte. O próprio comportamento da natureza não seria indício disso? Não se sucediam as estações? O sol (símbolo da força e da vida), o Sol que desaparece engolido pela noite não tornava a aparecer na manhã seguinte? (…) A morte pois, não significava destruição, mas transformação, era uma fase dum ciclo infinito. A morte, portanto, não é eterna, mas efêmera. É um perene rejuvenescimento da vida. Isso explica a alegria com que caminhavam para a morte aqueles belos jovens sacrificados a Texcatlipoca, o deus da eterna juventude. Os maias chamavam os recém-nascidos “prisioneiros da vida”.
Se a morte é a maior fonte de angústia do homem, e se o mexicano não a encara com horror, de onde vem o drama de que está saturada a vida desse povo? Eu diria que vem da própria angústia de viver, da fatalidade da vida. Há uma espécie de morte que o mestiço teme: a morte social, o horror de não triunfar, de não subir, de ficar por baixo, ignorado e sem nome. Se um cristão o ordinário teme os demônios do Inferno além-túmulo, o que o mexicano teme são as forças demoníacas deste mundo cheio de influências mágicas, em sua maioria maléficas. A morte – parece ele dizer- é certo; o incerto é a vida.