“Sempre tive medo da eternidade porque a imagino pouco propensa a reencontros”
Eu jamais assistiria El Año del Dilúvio se a Fanny Ardant não estivesse nele. Provavelmente por causa sinopse simplista, que nos engana ao dizer que a história trata de uma arrebatadora paixão entre uma freira e rico fazendeiro. Vou confessar que, até o momento, esse é o filme mais bonito que já vi da Fanny, desde o início dessa maratona não programada. Comentei outrora no Twitter que esse foi um filme que não me fez derramar uma lágrima sequer, mas que me deixou imensamente inquieta e dolorida, pela história amarga e obscura dessa freira.
A trama, que se passa o fim da década 50, é baseada em um livro escrito por Eduardo Mendonza, publicado em 1992. Fanny interpreta Sor Consuelo, a madre superiora de um hospital que sobrevive à caridade e que atende especialmente idosos e deficientes mentais. Em busca de financiamento para a criação de um asilo, Sor Consuelo procura Augusto Aixelá (Dário Grandinetti), uma fazendeiro influente e rico que simboliza esperança para seus pacientes.
O clima de medo e insegurança, reflexo da Guerra Civil Espanhola, ronda os personagens o tempo todo. Assaltos, saques e revoltas, fazem com que as freiras fiquem confinadas no convento com medo de serem roubadas ou violentadas. Inclusive, como curiosidade, Sor Consuelo revela que nessa época as freiras já não obrigadas a rapar o cabelo porque se elas precisassem fugir, o cabelo seria um bom disfarce para que não fossem reconhecidas. Nesse “pueblo” existe um saqueador em especial, que amedronta toda a população…
Acontece que Sor Consuelo é uma mulher extremamente forte, inteligente e rígida. Que acredita que possui controle sobre sua vida e sobre suas vontades. Ela luta contra o seu desejo, contra o amor que sente em relação ao fazendeiro e chega a pedir, encarecidamente, que seja confinada em um convento onde não possa falar com ninguém, nem sair para ver a luz do sol. Seu destino lhe impõe a necessidade de fazer uma escolha, entregar-se ou não a Augusto. O problema é que ao se entregar, ela renega seus valores, seus votos e tudo ao que até então acreditava.
– Existem duas curiosidades muito interessantes nesse filme, uma é que a Fanny estava falando espanhol. Mas, como não era um bom espanhol, ela foi dublada por Mercedes Sampietro. Este é o segundo filme de Jaime Chavarri, e dizem as más línguas que ele ficou profundamente apaixonado pela Fanny.
O copo de água
Em uma entrevista, Fanny chamou atenção para um detalhe que parece pequeno, mas que carrega consigo uma enorme construção metafórica. Sempre ao chegar à fazenda, Augusto lhe oferecia água. E mesmo com um calor exaustivo, ela não aceitava. As visitas foram aumentando, ao ponto em que ela passou a sentar-se na mesa com ele e a tomar limonada. É um indício de que a freira foi se corrompendo aos poucos. “As coisas na vida dela eram feitas a gosto de Deus, aos poucos ela foi abrindo os olhos não só para o amor, como também para a carne e para a sensualidade. Lembro que no princípio ela se nega a aceitar o copo de água. Ao longo do tempo ela se pergunta, “por que não?” Por que não beber água se estou com sede?
Existe uma sequência maravilhosa do filme, que faz a espinha gelar. É o momento em que Consuelo entende as consequências de sua escolha e percebe que mesmo tendo vivenciado uma paixão enlouquecedora, mesmo tendo traído seus votos e seus valores, seu destino é viver como freira. É conviver com o peso do hábito religioso, é renegar o seu lado sexual, é aceitar a sua condição…
Aliás, a trilha sonora desse filme é uma peça chave.