
Eu não sei o que tinha na cabeça lá pelos meus 14 anos, só sei que tinha uma coisa em mente: queria saber sobre o feminismo. Li, em algum lugar na internet (lembram do site de buscas “cadê”? Pois é, eu usava muito), que se você era feminista devia pelo menos ter ouvido falar em Monólogos da Vagina e em Eve Ensler. Lá fui eu, loquei o DVD e levei para a escola. SIM, EU LEVEI PARA A ESCOLA! Fui e mostrei pra professora de sociologia, sugeri que passasse pra turma. Nunca fiquei tão envergonhada quando meus colegas falaram que eu estava assistindo putaria e a professora sem entender (e sem ter ideia do que se tratava), não fez muito caso, levou na brincadeira. Fiquei com tanta raiva! Cheguei em casa e fui assistir o filme e nunca me senti tanta mal, aquela mulher na tela falava coisas tão pesadas e tão íntimas, que eu fiquei envergonhadíssima.
Os anos se passaram e eu, lendo um artigo feminista, me deparei com uma menção ao Monólogos. Corri para o Youtube e assisti o vídeo. Foi uma sensação estranha, como se eu pudesse me ver sentada na cama do meu quarto com quatorze anos, assistindo o filme e tentando entender o que Ensler falava. Dessa vez foi diferente, fiquei realmente admirada com a destreza e a sapiência dela ao abordar temas tão femininos e tão complexos. Hoje, depois de dez anos, entendi que eu não tinha a mínima maturidade para compreender a dimensão de tudo aquilo.

Eve construiu a peça entrevistando mais de 200 mulheres
Eve é uma atriz americana, ela lançou “Monólogos da Vagina” em 1996, trata-se de uma série de histórias de mulheres e a relação delas com a própria vagina. A atriz contextualiza questões de gênero, de sexualidade, relacionamentos e de abuso. Tudo diante da perspectiva da relação da mulher e do seu órgão sexual. A peça foi um estouro, é considerada uma das mais importantes peças políticas e experimentais de sua década, foi encenada por grandes atrizes como Jane Fonda, Meryl Streep, Glenn Close e Susan Sarandon. Traduzida para mais de 50 idiomas e encenada em mais de 150 países.
A ideia surgiu através de conversas casuais, Eve começou a criar pequenas anedotas sobre os casos que as amigas contavam e de repente tinha uma material tão bom que resolveu fazer mais entrevistas, assistir e anotar casos que via em jornais. Ela chegou a afirmar que era obcecada com histórias de estupros, que esse tipo de violência social só crescia e que estava diretamente relacionada com vaginas. Mais tarde confessou ter sofrido abusos sexuais e disse que o feminismo de antigamente era diferente do de agora, que é “muito mais informado e indignado” (de um jeito positivo).
Em uma entrevista que deu ao The Guardian, em fevereiro do ano passado, ela constatou algo interessante (e que de certa forma, justifica o sucesso da peça): “Me dei conta que a violação contra a mulher é universal, essa negação ao desejo e ao prazer, o fato de culparem a mulher por sua sexualidade, os abusos que sofrem. Quando você luta contra a mutilação genital que acontece em Gambia, quando você luta contra os ataques de estupros no Congo, quando você luta contra as queimaduras de ácido que as mulheres sofrem no Paquistão, acredita que isso não acontece no seu mundo ou na sua cultura, porque parece muito específico. Mas quando você finalmente percebe que a violência contra a mulher é o que sustenta o patriarcado, você entende que estamos nessa juntas. As mulheres em todo o mundo estão nessa luta juntas”

As histórias
Há histórias que te fazem rir, outras que te fazem chorar. Eve trata com naturalidade assuntos bem delicados que podem te fazer corar, alguns constrangedores….dentre as histórias que mais me chamaram atenção está a de uma mulher que desde pequena sofria repreensões da mãe quando colocava a mão na vagina (mesmo que estivesse coçando, ela não podia colocar a mão lá), nem deixar que colocassem. Ela conviveu com esse medo à própria vagina durante toda a infância, o que piorou quando ela foi estuprada. Em suas memórias, lembra que o abusador era um amigo do pai, recorda do pai brigando com a mãe e a mãe o mandando para fora de casa. Ela só foi se libertar dessa repulsa quando conheceu uma mulher, que a seduziu e que mostrou para ela o que era o sexo feito com carinho. Outra história interessante é de uma jovem que foi transar com um rapaz e se surpreendeu quando ele disse que ela estava fedendo. Ela dizia que não tinha culpa por causa dos seus fluídos vaginais, mas ele a humilhou e a chamou de porca e ela ficou tão traumatizada “que fechou a fábrica”, nunca mais fez sexo desde então…
Nem tudo foi um mar de rosas, a peça recebeu muitas críticas
O texto da peça desagradou algumas feministas. Na percepção delas, Eve deu a entender que o movimento prega a superioridade das mulheres em relação aos homens. Alguns acharam que ela retratou os relacionamentos sexuais de uma maneira negativa demais, e que se “esqueceu” da importância do feminismo das mulheres negras, debatendo apenas sobre situações de “mulheres brancas em situação de privilégio na sociedade”. A peça também foi criticada por conservadores, foi proibida de ser encenada em seis colégios católicos. Em 2007 a Universidade de Saint Louis também proibiu a sua encenação, dizendo que se tratava de um tema redundante. Camille Paglia atacou Eve dizendo que ela era uma charlatã se pagando de culta.

Em 1998, Eve criou o V- Day
Ela reuniu um grupo de pessoas para se manifestarem contra a violência sofrida por mulheres e meninas, a ideia é repetir esse evento até a violência acabar. Desde então, o V-Day ocorre em Fevereiro, Março e Abril todos os anos e oferece vários projetos (campanhas, peças, filmes educativos) cujo os lucros são doados à programas específicos a favor das mulheres. Uma das campanhas de mais sucesso foi a “One Billion Rising for Justice” (Um bilhão se levanta por justiça), lançada em 2013 – conseguiram juntar um bilhão de pessoas, em 207 países. Outra,que também reuniu um bilhão de pessoas, convidava os voluntários a dançar e a fazer um apelo global por justiça, a ideia era motivar as vítimas a quebrar o silêncio.
Em entrevista, Eve foi questionada se realmente achou que um dia conseguiria acabar com a violência contra as mulheres: “É uma boa pergunta. Vou te dizer o que penso. A escravidão, por exemplo, é barbárie. Como uma prática dessa ainda existe? Estuprar mulheres, mesma coisa. Como isso pode existir ainda? Eu acredito que tem que acabar e imediatamente! Nós temos que ter em mente que sim, é possível acabar com essa violência. Continuar justificando o ato como se fosse parte da condição humana, ou parte da própria vida, é normalizar esse tipo de violência permanentemente. Então, sim, eu acredito que essa ideia é possível. Absolutamente. Eu não continuaria trabalhando com isso se não acreditasse, seria uma pessoa insana. Ao mesmo tempo eu acredito que o mundo já mudou, hoje nos vemos notícias de violência contra mulheres estampando jornais, há 16 anos isso não acontecia. Então, isso me faz pensar,porque não pode acabar? Eu vou continuar acreditando nisso até os fins dos dias, é o que me faz levantar da cama pela manhã”