Carlota

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Tive uma experiência muito interessante essa semana, ao assistir a peça teatral “Carlota” (produzida em 2013, baseada na história de Miguel Mihura e dirigida por Mariano de Paco). Vi a peça completa no Youtube (com duração de duas horas), disponível em uma ótima qualidade de imagem e curiosamente, sem som,  apenas com legendas em inglês/espanhol ou em audiodescrição (sem imagens). O vídeo foi postado no canal do Ministério de Educação e Cultura Espanhol e faz parte do projeto “Teatro sem barreiras”do Centro de Documentação Teatral. Achei um máximo! A peça e a experiência…

Ver uma peça de teatro sem ouví-la me pareceu estranho nos primeiros minutos, ainda mais porque a legenda estava em espanhol e no início, eu não conseguia ler e prestar atenção nas imagens ao mesmo tempo. Sem perceber eu fui esquecendo desse detalhe e parecia que ouvia a voz de todos os atores, as músicas de fundo, os efeitos sonoros (que também são indicados pelas legendas), como se todos estivessem presentes. Foi como se o meu próprio cérebro substituísse essa ausência, construindo conteúdo e sentindo. Realmente, muito interessante.

Carlota

A peça traz uma trama de suspense, recheada de humor negro. Só para constar é ambientada na Inglaterra na década de 50. Carmen Maura interpreta o papel principal, uma farmacêutica rica e misteriosa, que é encontrada em sua casa, enforcada com as cordas do piano. No mesmo dia, ela iria oferecer um jantar para o amigo do marido que, por sinal, é um detetive (chamado Douglas Yard). Diante das circunstâncias, Douglas passa a noite investigando os possíveis suspeitos pela morte de Carlota e tenta entender porque a mataram – já que Carlota tinha a fama de ser uma pessoa amável.

Entre os suspeitos estão Charlie Barrington, o marido de Carlota. A sombria e assustadora empregada da casa, Velda (que tem como marca o rosto queimado). A melhor amiga de Carlota, Margareth (uma mulher histérica, que odeia homens). Sargento Harris (que aparentemente tem uma quedinha por Carlota e vive rondando sua casa). John (o empregado da casa, marido de Velda e igualmente sombrio), Doctor Whats (o médico da família) e Fred Sullivan (o funcionário da farmácia da qual Carlota é proprietária, o jovem também parece ter uma quedinha por ela). Mrs Christie e Mrs Lillian (amigas de Carlota).

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A peça começa com o Sargento Harris, Douglas e Charlie conversando amigavelmente na porta da casa de Carlota, enquanto isso, um piano toca ao fundo (provavelmente é Carlota que toca). A música para e os homens começam a chamar por ela. Ela não atende e não abre a porta, os homens começam a desconfiar de que algo está errado. Quando entram na casa, encontram Carlota na cozinha, estrangulada pela corda do piano.

É essa a cena de abertura para toda uma trama complexa, cheia de reviravoltas e muito humor negro. Os personagens são todos muito bem trabalhados, com muitas dualidades.  Às vezes você pensa que Carlota é um anjo e às vezes, que é o próprio demônio. Assim acontece com quase todos, como com Velda, a empregada da casa… que deveria receber uma enorme fortuna (dinheiro que foi parar nas mãos de Carlota). Ou mesmo Charlie, que escuta uma confissão de Carlota e deixa de confiar na esposa.

Todo o suspense é muito inteligente, eu não conseguia identificar o assassino porque as possibilidades eram inúmeras. Pior é que a atenção do espectador é desviada do verdadeiro assassino. O tempo todo acontecem pequenos acontecimentos (nem sempre ligados ao crime), como o sumiço da arma de fogo, o roubo da piteira ou o diário de Carlota, que andava escondido.

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Tudo me encantou nessa peça, mas eu fiquei admirada mesmo foi com os efeitos de luz e toda a construção do cenário. A chuva caindo pela janela, a delicadeza de, ao passar o tempo, trocarem a rosa por uma flor seca. A dança dos atores, que precisavam sair e entrar em cena com agilidade, as estratégias para fazer flashbacks, a maravilhosas roupas dos atores!! Incrível, muuuuito incrível!


Sobre Carmen e o teatro: 

É realmente incrível ter a oportunidade de vê-la nos palcos. Para você ter uma ideia, até então, foram 27 anos sem fazer nenhuma peça. Nas primeiras leituras dos diálogos, o diretor pensou em Carmen. Era ela que ele queria para interpretar o papel principal,  mas imaginou que não aceitaria. Em entrevista ele disse que ficou dias pensando em uma atriz que se parecesse com Carmen e por fim, decidiu convidá-la. “Nunca pensei que ela poderia fazer”. Na mesma entrevista, Carmen dizia que topou fazer a peça porque era uma comédia inteligente, e muito compreensível. “O que mais quero é que o público venha, que me veja…principalmente aquelas pessoas que, por idade, nunca puderam me ver nos palcos. É isso que quero, sobrevivo às críticas, mas me faria muito mal encontrar um teatro vazio”

Na peça, Carlota está em seu segundo casamento. Pelo contexto, eu daria no máximo 40 anos para a personagem. Quando a interpretou, Carmen tinha 68 anos. Sério! Estava super bem, por sinal. E ela fala, também na entrevista: “Tenho 68 anos e digo isso a todo mundo, porque estou muito orgulhosa. Ter idade não é um pecado, às vezes parece que ser jovem é uma virtude, mas é só uma circunstância. A idade influencia muito neste tipo de trabalho, ser ator é brincar com o tempo. Sou anticirurgias, claro. Só vou à academia e não deixo que me encham o saco. Se não quero fazer uma cena, não vou. Se não estou bem em algum lugar, vou embora e se quero desaparecer, desapareço. Quando fico sem trabalhar por um tempo é impossível me localizar,  nunca sei onde estou. Uma das coisas que envelhecem é a ansiedade, e vivemos num mundo com um nível de stress insuportável. Isso tira anos de nossas vidas, e nesse sentido, me cuido muito.”