Já parou para pensar que o amor pode não ser algo biologicamente determinado, mas culturalmente aprendido? Eu já, mas só depois que li o livro da Cristiane Costa: “Eu compro essa mulher”. Comentei sobre ele aqui há anos e prometi escrever uma série de resenhas sobre o livro… É uma das melhores coisas que já li, recomendo muito!
No primeiro capítulo, “Lições de Amor”, a autora explica como o amor pode não ser biologicamente determinado, mas culturalmente aprendido. A base da construção sobre o amor romântico está no gênero criado no século 12, a literatura cortês. Essas histórias românticas instauraram uma forma desejante de controle do imaginário que até hoje é exercido pelas telenovelas. A autora explica que não é possível afirmar que o conceito de amor foi criado nesta época, o que se pode afirmar é que a cultura de valorização do amor romântico, da maneira que conhecemos hoje, ainda não tinha sido inventada até então.
A linguagem romântica é instaurada pela cortesia. Historicamente a palavra cortês qualifica um conjunto de costumes adotados pelos cortes feudais. Na prática, foi um conjunto de normais éticas e estéticas que governavam a relação entre os sexos. Com o surgimento dessa nova literatura, surge o conflito entre duas retóricas: a linguagem dogmática da escolástica e a passional do amor cortês.
Esse novo formato ainda trouxe uma segunda revolução, ele coincide com a aceitação pela instituição eclesial deste mesmo amor como base do casamento. Somente no século 9 a Igreja começa a enfrentar o casamento com uma forma de aplacar a luxúria: “Houve revolta, principalmente entre os nobres, contra a instituição da monogamia, o fim do divorcio (ou o repúdio da esposa infértil, como eram definidas na época mesmo as mulheres que tivessem gerados filhos apenas do sexo feminino) e, mais do que tudo, conta a definição de incesto como relações com parentes até o sétimo grau, o que dificultava as estratégias de aliança. O problema do incesto colocava questões muito mais de ordem política do que amorosa sob o domínio da Igreja, que tinha o pode de abrir ou não exceções”. Só em 1090 surgem evidência da formulação de um novo modelo matrimonial, não definido pela imposição dos pais, e sim pela vontade dos envolvidos.
Nas histórias da época existia uma situação típica que prevalece até hoje: o obstáculo. Do mesmo jeito que conhecemos, a separação que ao mesmo tempo afasta e intensifica o desejo. Outra era a rebelião dos filhos, movidos pelo amor e contra as ordens paternas (a exemplo Romeu e Julieta: “uma história que deixa claro como a noção de escolha, que assegura a autonomia do indivíduo, já era viável. Mas também como entrava, muitas vezes, em conflito direto com os interesses coletivos numa época em que a sociologia da aliança ainda prevalecia sobre a psicologia amorosa. E o final para o sujeito desejante era a morte”.
A rainha Vitória, no século 19, foi a primeira monarca a se casar por amor, numa escolha pessoal e não movida por estratégia. A exemplo do conto Cinderela, história onde o rei pede uma moça pobre em casamento por paixão: “ A era vitoriana, mais identificada pelo puritanismo da moral burguesa, nos legou também o modelo de casamento tal como conhecemos hoje, em seus vestidos brancos, véus e grinaldas, e motivação exclusivamente romântica. Um modelo em que o casamento e não o adultério, seria o veículo certo para canalizar as poderosas forças da paixão”.
Romeu e Julieta e a ruptura da Ordem
A história de dois amantes separados pelo ódio dos familiares é repetida até hoje, nas tramas de telenovelas… mas, a origem é muito mais antiga, embora popularizada por Shakespeare no século XVI. O conto surgiu no século 3, quando os gregos já contavam a saga de uma mulher que recorreu a uma poção que simulava a morte para escapar de um segundo casamento: “Pelo menos cinco italianos já tinham se debruçado sobre a história antes de Shakespeare, que, no entanto, se inspirou unicamente no longo poema do inglês Arthur Brooke.
Em Shakespeare não é a desobediência dos filhos que provoca o destino trágico e sim a insistência dos pais em não ouvir os filhos. A fábula moralista se transforma em libelo revolucionário. O amor leva ao conflito extermínio, a morte dos amantes significa não a derrocada da ideia do amor, mas um sacrifício por meio do qual funda-se um mito de origem de amor moderno.
Cinderela e a ascensão social pelo amor
Ao contrário de Romeu e Julieta, Cinderela vigora a primazia do amor sobre a ordem social (provavelmente por isso é uma das histórias mais repetidas pela cultura de massa. A história foi criada em 1697, na França por Charles Perrault e teve pelo menos 345 variantes, além de ter dado origem a vários versos de filmes, óperas e animações: “Não faltam interpretações sobre essa pequena história. Desde a psicológica que encara a relação de Cinderela com sua madrasta como uma tentativa de ultrapassar o poder materno ou vê nos pequenos sapatinhos de cristal um símbolo de feminilidade”.
O mito é usado até hoje nas telenovelas, pois apesar de sua improbabilidade histórica, junta duas fantasias: ascensão social e amor. O casamento permitiria a classe mais baixa ostentar os mesmos meios de distinção simbólica da clássica dominante. Um ato ideal feito sob medida para a sociedade de consumo. A história personifica o mito de que é possível ultrapassar as fronteiras sociais através do amor.
Abelardo e Heloísa ou o obstáculo
O amor impossível entre o filósofo Abelardo e Heloísa foi contado em cinco cartas que correram o mundo. A história, cheia de acontecimentos dramáticos parece muito com os melodramas. Há várias teorias sobre a origem do livro, e quatro delas merecem atenção: a correspondência seria autêntica, mas retocada no século seguinte, o conjunto de textos poderia ser um romance epistolar, as cartas teriam sido reescritas por Heloísa depois da morte do esposo e finalmente, trata-se de um dossiê fictício, com base nas lembranças transmitidas oralmente.
Tristão e Isolda ou o triângulo amoroso
O triângulo amoroso também é explorado tanto na literatura quanto nas telenovelas (através de inúmeras variações) e faz sentido até hoje, além de ser muito pedagógico. O mito tem origem na história do jovem Tristão e a mulher do seu tio, Isolda. “Trata-se de uma relação de duplo vínculo: não é difícil ver que esconde uma contradição, o casamento era proposto como único lugar autorizado para o desrecalque das pulsões sexuais, e o mesmo casamento era recuado à parte da maioria dos homens. Os personagens principais, ao valorizar o adultério, evidenciam a incompatibilidade entre o casamento e o amor.
A paixão, por outro lado, possui um lado, é muito mais volátil e não tanto revolucionário e desestabilizador como o amor. “O ardor de Tristão e Isolda duraria exatamente três anos, tempo em que se diluem os efeitos do filtro, uma bebida mágica que seria responsável por despertar a paixão”. O mito do filtro, hoje seria chamado de tesão.
E aí, gostaram? O texto acima é uma resenha do primeiro capítulo do livro “Eu compro essa mulher” (2000), da Cristiane Costa. 🙂
Muito bom o texto, parabéns!