Os perigosos – Autobriogafias e AIDS

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“Os perigosos” é um daqueles livros que se guarda para sempre, o encontrei perdido em uma das estantes da Leitura e o trouxe junto na mala na minha mudança para São Paulo. Li fazendo inúmeras anotações, tentando ficar atenta a tudo. Marcelo Secron Bessa tem um texto dinâmico, delicioso e muito esclarecedor. Foram 379 páginas de muito aprendizado.  O livro realiza uma análise sobre as produções literárias com temáticas relacionadas à AIDS e dá uma ênfase nas autobiografias.  Mais do que isso, oferece uma oportunidade de compreender como a imprensa reagiu em relação a doença e como reforçou alguns estigmas (tinham uma narrativa baseada em medo e preconceito, mas ao mesmo tempo, alertavam e informavam os leitores).

Este é um tema que me interessa muitíssimo, por vários motivos. Me impressiona como a minha geração desconhece a história relacionada à doença e por vezes, acredita estar imune a ela. Como eu disse, este livro me ensinou muito e me fez ter conhecimento sobre histórias e fatos que não imaginava. Nos primeiros capítulos, o autor conta que a epidemia foi tratada como um “câncer gay” e que muitos acreditavam que ela não chegaria ao Brasil. Na época, a imprensa direcionava matérias sobre a AIDS para as seções de saúde.

Uma das grandes discussões, que prevaleceu por muito tempo, é a de como encarar o doente. Eram vítimas ou culpados¿ Existia ali uma inocência ou uma vilania? Como a doença foi diretamente ligada aos homossexuais, existia todo um discurso moralista que os tinha como pervertidos. Os médicos e os enfermeiros, por outro lado, eram tratados como heróis. Na metáfora militar, eles encarnavam os soldados na linha de frente de combate. Ao longo dos anos foram surgindo narrativas literárias e matérias com tom romanesco. Um exemplo interessante é o de um jornalista que se passou por médico para acompanhar o dia a dia de um hospital que tratava desses pacientes.

O autor dialoga com muitos outros autores que realizaram um trabalho literário sobre a AIDS, como Susan Sontag, Michel Foucault, Jean-Claude Bernardet, e Valéria Polizzi. Também entre eles está Hebert Daniel.  Sobre Herbert, o autor afirma: se Cazuza foi a cara da doença, Hebert Daniel foi a voz. Sobre Hebert há um apontamento interessante, ele não gostava do termo “aidético” dizia: “Não sou aidético, estou com AIDS”. Sobre isso, reescrevo uma citação que marquei no meu livro:

“Nas reportagens jornalísticas anteriores, a pessoa com AIDS é chamada de vítima, doente, condenada e similares. Usualmente, ao serem interpelados sobre o porquê do uso de aidético em detrimento de termos menos tendenciosos, os jornalistas esclareciam que seria imposição dos editores para ocupar menos espaço. Decerto que isso faz sentido, já que, geralmente, os textos jornalísticos têm espaços contadíssimos e, por isso, devem prezar pela síntese. Mas, hoje, relendo uma fotocópia daquela edição do jornal, penso que além da intenção (e necessidade) de ocupar menos espaço nos textos, parece também que sua criação pelo tal “ABC da AIDS”, naquele momento e naquele contexto, visavam dar um tom, digamos, mais científico e, portanto, neutro do que parece indicar a justaposição desse termo com outros mais médicos e técnicos”.

O capítulo que mais gostei, que está todo marcado e cheio de post its, fala sobre Caio Fernando Abreu (um dos meus autores favoritos). Caio foi um homem extremamente sensível e marcado como um “escritor pesado e de baixo astral”. Por volta de 1994, quando se descobriu soropositivo, ele se tornou uma “celebridade”, o que de certa forma lhe causou certo incômodo:  “Sinto que houve, primeiro, quando me declarei soropositivo, um espanto, depois um movimento meio de solidariedade, misturado de piedade e escândalo. E acho que Ovelhas negras não recebeu atenção da crítica. Ganhou muita nota, teve muita entrevista e aí os caras só queriam saber sobre AIDS, era um absurdo. Depois (de aparecer no programa) do Jô Soares, parei. Porque o meu trabalho literário continua. O resto da crítica falava sobre um escritor com AIDS e tal, inclusive nas críticas da reedição de Morangos Mofados. O texto não foi levado em consideração”.

Durante a doença, Caio busca inspiração em Frida Kahlo e se identifica com a dolorosa vida da pintora que, depois de um acidente, passou por sérias intervenções cirúrgicas e sentiu muitas dores. “Tenho lido muito. Sofri e chorei com O diário de Frida Kahlo que me dá muita força: se ela suportou tanta, tanta dor, porque eu não suportaria também?”

A AIDS em “Mujer, casos de la vida real”

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Hoje de manhã revi a participação da Helena Rojo no programa “Mujer, casos de la vida real” e mergulhei numa lembrança gostosa sobre a época em que eu era bem novinha, vi este episódio no SBT e fiquei impressionada com a trama. O programa fez um enorme sucesso no México e foi comercializado para vários países, trata-se de rápidos episódios com histórias dramatizadas que abordavam assuntos da vida feminina, alguns bem complexos por sinal (como violência doméstica, aborto…).

A Silvia Pinal era a apresentadora, e o programa ficou no ar entre 1988 e 2007 (contava com a participação de atores e diretores renomados). Lembro que o assistia diariamente, era apresentado pela filha do Sílvio Santos, a Sílvia Abravanel e passava no finalzinho da tarde. De tantos episódios que assisti, o da Helena Rojo foi o único que ficou grudado na memória e vê-lo novamente me surpreendeu muitíssimo, porque certas cenas são extremamente familiares.

Helena interpreta uma estilista cujo casamento caiu na mesmice. O marido vive preocupado com suas ocupações e ela não tem seus desejos correspondidos. Em um diálogo muito interessante, a personagem confronta o marido sobre a vida sexual dos dois e afirma que está há mais de três meses sem fazer sexo. Ainda nesta cena, ela questiona o marido se ele não tem medo da possibilidade de ela transar com seus funcionários (que são modelos e por sinal, mais bonitos e mais jovens).

Quer dizer, ainda que a série tivesse uma pegada mais leve e bem dramatizada, também tinha um tom corajoso e contestador. Falar tão abertamente sobre a sexualidade feminina, ainda mais na década de 1990 e na TV Mexicana, que sempre foi muito conservadora, é um passo e tanto. Realmente acho admirável.

O fato é que depois de ser ignorada pelo marido, ela decide transar com seu funcionário. Logo no início do capítulo nos é confidenciado que o garoto é hemofílico, apontando uma deixa para o que depois, se tornaria o clímax do episódio. Ao longo da trama, a personagem cria uma relação forte com o funcionário a ponto de decidir se separar do marido, é quando o marido adoece e ela acredita que ele está fazendo “cena”, tentando prendê-la no casamento. A verdade vem à tona quando o funcionário confessa que está infectado pelo vírus HIV.

O episódio desmitifica muitos estereótipos da doença e que foram fortemente reproduzidos na década de 1980. Primeiro porque o agente transmissor não é um homem e sim uma mulher, hétero e casada. Lembrando sobre a importância do sexo com preservativo, inclusive no casamento, o episódio também vai contra um estereótipo antigo e ultrapassado: de que a doença está relacionada estritamente aos homossexuais. Quer dizer, se nos foi indicado que o funcionário era hemofílico e heterossexual, nos resta algumas possibilidades que nada estão relacionadas aos gays: ou ele pegou o vírus em uma transfusão, ou usava drogas (seringas contaminadas) ou fez sexo sem camisinha.

No mais, só acho que a série peca ao mostrar o marido moribundo, agonizando antes da morte. Eu realmente não sei como se dava o tratamento à época, mas hoje se sabe que é possível conviver com a doença e levar uma vida normal.

* Muito obrigada ao clube de fãs da Helena Rojo, que sempre compartilham materiais e nos deixam atualizados sobre o que ela anda fazendo. Obrigada mesmo, vocês são demais!

“AIDS mata!” Eu sei porra, mas eu estou viva!

  • O título foi retirado de um dos capítulos do livro

 Às vezes eu fico pensando o que seria de mim se eu tivesse AIDS. Sabe, não sei o que acontece, tenho uma curiosidade danada para entender como foi o surgimento da doença e ao mesmo tempo, penso com os meus botões sobre o medo absurdo que tenho dela. Sempre vejo fotos, vídeos e matérias relacionados ao tema e fico pasma com a devastação que essa doença provocou na década de 1980. Por favor, não me entendam mal, não tenho nenhum medo (ou preconceito) em relação aos portadores do HIV, tenho medo da doença em sí… aliás, tenho medo da AIDS como tenho medo de qualquer outra doença, como do câncer, por exemplo.

depois daquela viagem

Desculpem pelo parágrafo acima, ficou meio merda. Por enquanto vamos mantê-lo. O que eu queria contar mesmo pra vocês é que ontem à noite peguei o livro “Depois daquela viagem” para ler e li numa sentada. É um livro delicioso, a narrativa melhor ainda – extremamente jovem, simples e coloquial. A autora, Valéria Piassa Polizzi conta como foi que ela pegou AIDS e as consequências da doença para a sua vida. Ela escreveu o livro com 23 anos, já convivia com a doença há seis anos. Sério! Imagine, você com 17 aninhos, se preocupando com o vestibular, com a formatura do ensino médio e daí descobre que está com AIDS… isso nos anos 1980.

O que mais me encantou no livro dela foi a sua capacidade de contar toda aquela história, que poderia ser transformada em um “dramalhão”, de uma maneira leve e por horas até divertida. Juro que em alguns momentos do livro me peguei rindo em voz alta (e é muito raro isso acontecer).

 Quando tinha quinze anos e fazia uma viagem à Argentina com os pais, Valéria conheceu um rapaz…. Eles começaram a namorar meses depois e o cara era super violento com ela, batia mesmo. Valéria não comentava sobre violências que sofria e todo mundo achava que o cara era um santo, até que um dia a avó dela viu ele batendo nela… ligaram para a casa dos pais do rapaz e para a surpresa, os pais dele disseram que isso era “normal”, que ele também era violento em casa e vivia quebrando tudo. Bom, o cara usava drogas e provavelmente foi assim que pegou e passou a doença para Valeria. Quando ela descobriu já não estava mais namorando com ele, tinha planos de viajar para os EUA e ainda não sabia o que iria fazer de faculdade. Ela começa seu tratamento no Brasil e o continua nos EUA, enquanto isso vive uma vida normal, sai com os amigos, estuda e se diverte…

Achei muito (muito) interessante quando ela contou que as pessoas se negavam a acreditar que ela tinha pegado AIDS apenas por sexo vaginal (sem proteção). Até mesmo os médicos americanos a questionavam se ela tinha usado drogas ou feito sexo anal, diziam que era raríssimo uma mulher com a doença. Quer dizer, ninguém sabia de nada… ou, sabiam muito pouco. E o preconceito era enoooorme, imagine que pensavam que apenas os gays pegavam AIDS. Genteeee! Diziam para Valéria não contar que tinha AIDS porque ela sofreria preconceito demais, então ela escondeu a doença dos amigos e da família durante anos, e sempre era obrigada a ouvir piadas sobre o assunto  ou comentários inadequados tipo… uma amiga dela, dentista, se negou a atender um homem gay porque ele poderia ter AIDS e ela não queria se contaminar.

Apesar de tudo, acho que Valéria teve sorte. Foi tratada nos melhores hospitais e com os melhores médicos do país, se tratou nos EUA, teve o acompanhamento e apoio dos pais e dos amigos. Agora imagine ser pobre, não ter apoio de ninguém e ter que conviver com a AIDS num Brasil em 1980. Me lembra uma das palestras que ouvi do Doutor Drauzio Varella, que tratou pacientes portadores do HIV no Carandiru… man, que tristeza! (Sério, muito triste ver aqueles homens definhando, sem tratamento adequado, num lugar inapropriado… nossa, me dá nervoso só de lembrar).

Clube de Compras Dallas

Ron Woodroof (interpretado por Matthew McConaughey) é um texano heterossexual, conservador e homofóbico que, após um acidente no trabalho, é internado em um hospital e descobre ter AIDS. O filme, dirigido por Jean-Marc Vallée, acompanha Woodroof durante os processos da doença e mostra como ele travou uma batalha contra a indústria farmacêutica, ajudando milhares de pessoas soropositivas em seus tratamentos. A trama, que se passa na década de 1980 e é baseada em  fatos reais, também conta com Jared Leto e Jennifer Garner.

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MCCONAUGHEY, O CLUBE … E O OSCAR

Quem vê Matthew McConaughey agora, talvez não se lembre da época em que o ator protagonizava comédias românticas ou filmes de ação com diálogos babacas e superficiais (nem todos, eu sei!). McConaughey está definitivamente mais maduro e, de certa forma, carrega consigo o filme. Jared Letto também está incrível (aliás, ele é incrível), mas o seu personagem não é tão bom quanto o de McConaughey, não mesmo. (Pode parecer que eu estou menosprezando o Letto, não é isso, acontece que ele possui desempenhos muito melhores do que esse.)

A gente sabe que a academia adora transformações físicas, o público se impressiona quando os atores emagrecem muito ou engordam demais para o papel, não é atoa. As transformações físicas demonstram o comprometimento, a dedicação e as dificuldades impostas pela produção.

Mas, ligar o filme apenas a esse aspecto é uma injustiça. “Clube de Compras Dallas” possui uma história densa e interessante, uma estética ambígua e diálogos bem construidos. A ambientação é de deixar o queixo caído, principalmente quando se dá conta de que o filme contou com um orçamento de 5 milhões de dólares… pode parecer muito, mas não é – esse orçamento é de um filme pequeno. Talvez por isso, apresente uma estética tão documental.

Em relação aos personagens, o destaque mais uma vez vai para McConaughey, afinal, Ron Woodroof é um homem desprezível que vai se redimindo ao longo da trama. Não dá para questionar a sua indicação de melhor ator ao Oscar, aliás, meu coração está completamente dividido entre ele e Leonardo DiCaprio (que concorre por O Lobo de Wall Street).437580.jpg-r_640_600-b_1_D6D6D6-f_jpg-q_x-xxyxxAINDA SOBRE A AIDS…

Clube de Compras Dallas é um filme sensacional, depois de assisti-lo fiquei com uma vontade imensa de reler “Doença como metáfora”, escrito por Susan Sontag em 1988. Já na segunda parte do livro (dedicado à AIDS), Sontag afirma que o HIV banalizou o câncer. Contextualizando essa afirmação (com a doença explodindo exatamente nesse período), o que Sontag diz parece bastante plausível. Ela ainda afirma o seguinte: “Ao contrário do câncer, entendido como uma doença provocada pelos hábitos do indivíduo (e que revela algo a respeito dele), a AIDS é concebida de maneira pré-moderna como uma doença provocada pelo indivíduo enquanto tal e enquanto membro de algum “grupo de risco” – essa categoria burocrática, aparentemente neutra, que também ressuscita a ideia de uma comunidade poluída para a qual doença representa uma condenação”.

Incrível como essa reflexão está bem representada no filme e, como a sociedade parece mergulhada e engessada em seus próprios preconceitos – ainda hoje, é claro.  Uma das denominações mais estupidamente criadas e usadas por um longo período foi chamar a AIDS de “câncer gay”, ligá-la apenas a homossexuais, bissexuais ou prostitutas. A gente sabe que qualquer heterossexual que transa sem proteção está igualmente exposto a contaminação. Lembro-me bem de uma campanha publicitária governamental que incentivava homens e mulheres acima dos 60 anos (casados ou não) a usarem camisinhas. Uma quantidade absurda de idosos foi diagnosticada com a doença (não sei como estão os dados atuais) e não  se davam conta disso, acabam recebendo o tratamento tardio.

clube-de-compras-E o “Clube de Compras Dallas” toca na ferida, sabe exatamente onde ir. Além portar uma doença terrível, essa pessoas precisam conviver com o pré-conceito, que já é em sí, uma coisa absurdamente cruel. Por isso a grandiosidade do filme, não só por apresentar boas atuações, mas por trazer um retrato sincero sobre o HIV, de colocar o assunto mais uma vez em pauta. Relembrando Susan Sontag mais uma vez, há uma passagem no livro em que ela diz “A idéia da doença como castigo é a mais antiga explicação para a causa das doenças”.