A lei do desejo

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Escrever sobre um filme de Almodóvar é difícil, seus longas possuem tantas metáforas e possibilidades de interpretações que eu tenho certeza em afirmar que esse texto não faz jus à obra nem autor.  Mesmo assim eu vou escrever um pouco, é de madrugada e eu não tenho um pingo de sono. Hoje (re)assisti “A lei do desejo”, um filme intenso, cheio de cores e sentidos, que me pareceu muito diferente de quando o vi, anos atrás. É claro que no filme nada mudou. Quem mudou fui eu e isso me soa inquietante.

“A Lei do Desejo” foi lançado em 1987, foi o primeiro longa em que Almodóvar se aventurou a retratar tão abertamente a sexualidade, sendo considerado em vários países como um filme erótico. Na trama, Eusébio Poncela vive Pablo Quintero um diretor cinematográfico que sofre por ser abandonado por seu amante, Juan. Os dois mantém uma bela amizade e se comunicam por cartas. Pablo resolve convidar a sua irmã transexual Tina (interpretada por Carmen Maura) para interpretar seu novo filme. Junto a ela vive uma menininha adotava que nutre uma paixão platônica por Pablo. O filme faz um enorme sucesso e na festa de lançamento Pablo conhece Antônio (interpretado por Antônio Banderas) e se envolve sexualmente com ele – depois, amorosamente também. O que ele não esperava é que Antônio desenvolvesse por ele um amor louco, obsessivo.

Almodóvar disse em uma entrevista que as lembranças desse filme o remetem à uma época de liberdade, aos anos 80 em que a juventude era contestadora e realmente acreditava na revolução sexual. E, e fato, o filme dá essa sensação, de que nada é proibido. Nem mesmo rezar sem calça e fumando cigarro.

Das Gesetz der Begierde

O trabalho de metalinguagem é incrível. Pablo só pode ser um alter ego do próprio Almodóvar e convenhamos, um filme falando de outro filme e um diretor contando a história de outro diretor é um jogo narrativo de deixar qualquer um louco! Fora que em certo momento da trama, Pablo começa a escrever uma história e esse personagem se confunde com Tina, são praticamente a mesma pessoa, passaram pelo mesmo na vida…

O lubrificante:  Vi em algum lugar uma interpretação muito bonita sobre a primeira transa entre Pablo e Antônio. Perdoem por não citar a fonte, mas é porque não salvei. Na cena, Antônio conta para Pablo que nunca transou com nenhum homem. Diante da dificuldade, Pablo apaga a luz e pega um lubrificante. A cena gerou piadinhas, descontentamento e deixou muita gente inquieta nas salas de cinema. Muitos interpretaram como um detalhe desnecessário, viram a cena como puro erotismo. A opção por mostrar esse ato tão íntimo enfatiza o momento em que Antônio cria um elo de amor e confiança com Pablo, ele simplesmente permite que Pablo domine seu corpo e se entrega, apesar da estranheza e da dor.

ley deseo rainbow

 A transexualidade de Tina: Em uma entrevista Carmen Maura disse que se preparou muito para interpretar Tina, que achava que esse era o personagem de sua vida e que fez um mergulho intenso para se contextualizar. Perceber os pequenos detalhes ajudam a entender a grandiosidade dessa atriz (e juro que não tô falando isso não só porque a amo). Por exemplo, é muito interessante todo o seu esforço em engrossar a voz (que é bem fina) ou a sua postura corporal, tocando sempre os seios – como se quisesse mostra-los como troféu de sua feminilidade. Esse é uma das características que mais me faz amar esse filme, Almodóvar trata a transexualidade com respeito e naturalidade.

No filme há um jogo de cena muito valioso. Como sabemos, Tina é interpretada por uma mulher. Ela adota a garotinha e passa a trata-la como se fosse sua mãe. Há um momento em que a mãe biológica da menina aparece no filme, e ela é interpretada por uma transexual.

Toda a discussão sobre sexualidade e gênero é muito forte quando esbarra em Tina. Não importa quem ela foi, importa o que ela é e como se sente – e a sua necessidade de se reinventar. O fato é que quando vem à tona, a história de Tina realmente surpreende (Almodóvar mais uma vez toca na ferida). Na cena em que ela entra na igreja descobrimos que foi abusada por um padre pedófilo. Depois, quando seu irmão perde a memória, ela conta da relação incestuosa que teve com o pai (que se apaixonou perdidamente por ele e que fugiu para viverem juntos).

Em suma é um filme que me parece falar não só de desejo, mas principalmente de abandono. Não só do desejo da Tina de ser entendida como mulher, ou o desejo do Pablo de ter um pouco de tranquilidade, ou da menina de ser amada. Em algum momento da vida, todos esses personagens sofreram um tipo de abandono que os marcou profundamente. Talvez por isso tão forte e recorrente o “Ne me quitte pas”, que surge de maneira recorrente na trilha sonora do filme. Pablo foi abandonado por seu amante, a garotinha por sua mãe e Tina pelo pai.

A flor do meu segredo

Rever Almodóvar é uma necessidade, um brinde a milhares de homens e mulheres que existem dentro da gente, mas que ficam adormecidos. Em suas cores, em seus diálogos, em seus planos e enquadramentos, o diretor brinca com a tragédia humana, nos cerca de questionamentos sobre assuntos existenciais: amor, morte, sexo, dinheiro, medo, solidão, loucura. EXAGERO. É inegável, Almodóvar tem sua marca, domina o que faz e o faz muito bem.

Assisti um de seus filmes outro dia; decidi rever um que fosse estrelado por Marisa Paredes. Também estava com saudade dela, daquela voz charmosa e irresistível. Fiquei na dúvida, muitas opções. Maus Hábitos? Tudo Sobre Minha mãe? A pele em que Habito? De salto alto? Não… A Flor do meu segredo!

Imagem“A flor do meu segredo” é um daqueles filmes que deixam o coração apertado, que causa catarse já nos primeiros instantes. Na história, Leo Macias (Marisa Paredes) é uma escritora famosa que enfrenta uma crise criativa. A ausência do seu esposo, Paco – que é militar, a deixa depressiva e melancólica. Leo, é uma mulher sedenta por amor.

Ao mesmo tempo em que a editora a pressiona a produzir outro romance, ela se afoga em bebidas e apresenta um comportamento suicida. Um detalhe interessante é que Leo não assina as obras em seu nome, ela usa o heterônimo: Amanda Gris. Nas pequenas subtramas: a empregada da casa enfrenta um impasse, ou continua trabalhando com Leo, ou se dedica a companhia de dança. A mãe e a irmã da personagem principal vivem em guerra. Um editor do jornal El País aceita Leo como colunista do jornal e sua melhor amiga estuda estuda a melhor forma de noticiar a morte.

Indefenso frente al acecho de la locura

Assisti uma entrevista onde a Marisa Paredes resume perfeitamente sua personagem, ela afirma que Leo é uma mulher que não está disposta a seguir se enganando, que ela tenta de todas as formas – desde o fundo de sua alma,  a recuperar um amor que já morreu. Em suma,   essa é a essência do longa, a dor provocada por uma busca inútil. Leo entra em uma guerra que já está perdida.

Não acho que essa perspectiva sobre o “perder” se limite só ao amor. Somos, todos nós, perdedores em alguma coisa- e é difícil reconhecer isso. Pode parecer pessimismo, mas não é. Ninguém pode vencer em tudo, essa é uma condição humana. No caso do filme, Leo chegou “a beira da loucura”, isso porque não sabe viver sem amor e para ela, Paco significa amor.

tumblr_mq7sop3CBE1rif7tro1_500Difícil conversar tecnicamente sobre o trabalho do Almodóvar, isso porque ele é único – desculpe se eu repeti essa expressão várias vezes, HAHA, mas é bem isso. Em “A flor do meu segredo” o diretor está mais trágico, mais lento e muito mais romântico -diferente das comédias exageradas que fez anteriormente.

Se existe uma cena que me encanta no longa se passa no momento em que Leo, depois de tentar o suicídio, vai para o centro da cidade e se depara com a greve feita pelos estudantes de medicina. Ela caminha entre milhares de pessoas vestidas de branco, que entoam uma canção. Leo veste vermelho, está de óculos escuros e está visivelmente abalada. A cena me remete logo a uma canção do Legião Urbana: “É solitário andar por entre a gente”.

É incrível como Almodóvar sabe usar metáforas, ele tem uma delicadeza ímpar e consegue encaixá-las perfeitamente na trama. Nas cenas iniciais, por exemplo, Leo aparece sentada em seu escritório, escrevendo mais um de seus romances e usando uma bota que o marido lhe dera de presente. As botas doem e estão tão apertadas que ela não consegue tirar. Tal qual acontece em seu casamento, há um amor absurdo, insuportável, tão grande e tão forte, que a sufoca.

Marisa ParedesHoje calcei as botas
que me ofereceu há dois anos.

Lembra que teve de me tirar
porque, sozinha, eu não conseguia?Ao vê-las, esta manhã, me lembrei
de você e calcei-as em sua homenagem.
Estão apertadas.

Por vezes, lembranças de você,
como estas botas
apertam-me o coração
e mal posso respirar…
Não consigo descalçá-las

Mulheres a beira de um ataque de nervos

—”Miénteme. Dime que me has esperado todos estos años. Dímelo.
—Te he esperado todos estos años.
—Dime que habrías muerto si yo no hubiera vuelto
—Habría muerto si tú no hubieras vuelto.
—Dime que me quieres todavía, como yo te quiero.
—Te quiero todavía como tú me quieres.
—Gracias. Muchas gracias.”

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