Nota sobre Adelaide, a feminista de Éramos Seis

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Há muito tempo não assisto novelas, para ser sincera eu não me lembro da última vez que liguei a minha televisão. Às vezes revejo um capítulo aleatório de qualquer uma delas, pela internet mesmo, só pra relembrar aquelas cenas mais marcantes.  Desse universo, de tudo o que já assisti, uma novela me marcou em especial: “Éramos seis” (inclusive já comentei sobre isso por aqui, em uma postagem sobre o livro). E é verdade o que eu contei, que eu saía da escola e não dava preocupação pra mais ninguém, porque eu chegava em casa, ligava a TV e ficava horas assistindo (nada muito saudável, por sinal).

Adelaide era uma das minhas personagens favoritas (eu amava a Dona Lola e a Carmencita também), mas eu vibrava quando Adelaide aparecia na tela. Achava lindo o cabelo e o jeitão corajoso que dela, que diferente das outras garotas, não tinha medo das convenções sociais. Ela usava calças, dirigia o próprio carro, sentava-se à mesa do bar com os homens, jogava sinuca, era acadêmica e fumava lindamente (como as atrizes do cinema clássico que fui descobrir anos depois).

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Estou revendo a novela pelo Youtube, bem aos poucos para falar a verdade (é complicado por causa da falta de tempo). Tô na metade da novela e a aparição de Adelaide me chamou atenção… Ela só aparece na segunda fase e tem um conflito enorme com a mãe porque não concorda com a educação diferenciada que recebeu. Enquanto a irmã problemática foi cercada de atenção e carinho, ela foi enviada à Europa para estudar e sofria por causa da distância e da solidão. Por outro lado, foi nesse momento em que ela teve o primeiro contato com o feminismo.

O que me chamou atenção é que diferente de tantas outras personagens feministas, retratadas em novelas de maneira caricata, Adelaide  tem uma representatividade positiva. Ela até brinca com isso quando questiona um personagem que se surpreende com sua beleza: “Pois é, nem toda feminista tem bigode!”. E ela não tem um discurso de ataque aos homens, em nenhum momento ela parece ter raiva do gênero masculino. Ela fala, a todo o tempo, sobre igualdade. Aliás, num dos seus primeiros momentos na novela ela questiona o fato de as mulheres não poderem votar no Brasil e cita a importância da Berth Lutz nesse processo.

Enfim… é  uma delícia poder rever essa novela; a Adelaide é uma personagem inspiradora, que retrata um momento importante da emancipação feminina e que ao mesmo tempo, traz questionamentos super atuais.

O terceiro sinal: um monólogo sobre as experiências de um ator não profissional em sua primeira peça de teatro

Dentro de alguns minutos, sem nenhuma experiência prévia, tendo decorado o texto na última semana e tomado parte em apenas três ensaios, sem ser nem desejar me converter num ator, eu estaria me apresentando diante de uma plateia pagante num dos teatros mais mitológicos do País, sob a direção do mais histórico de seus diretores”.

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 O lançamento da Companhia BR 116 aconteceu há seis anos, em julho de 2010. A parceria entre a atriz mineira Bete Coelho e o ator baiano Ricardo Bittencourt trazia a experimentação como proposta chave do projeto, a ideia era permitir que atores trabalhassem tanto na direção quanto na roteirização de suas peças. Celebrando o início dessa caminhada eles se uniram para criar “O terceiro sinal”, uma obra com tom autobiográfico e cheia de metalinguagens.

Este trabalho inspira muitas reflexões, especialmente por se tratar do teatro falando do teatro. De início, cabe analisar a concepção da companhia. Quando a criaram, os atores pensavam em uma maneira de não dependerem tanto de patrocinadores.  Na época, Ricardo Bittencourt chegou a explicar para o jornal Estadão que a peça não recebeu patrocínio: “Estamos fazendo sem patrocínio, como um hino de amor nosso ao teatro e uma forma de a gente estar vivo, atuando, enquanto companhia, enquanto realizadores. ”

Em seu livro, “Iniciação ao teatro”, Sábato Magaldi dedica o capítulo “A Empresa” para falar exatamente sobre a importância da organização financeira das companhias e explica que ela é fundamental para manter a peça em cartaz. Neste processo, muitos artistas e estrelas acabam por se transformar em empresários, que se dedicam quase que integralmente às tarefas executivas. O autor ainda afirma que muitas companhias surgem não só como um empreendimento, mas como a possibilidade que o artista encontra de imprimir sua personalidade a seu trabalho.

Bete Coelho chega a dizer que o teatro é o primo pobre das artes e quem se entrega a esses projetos precisa se preparar porque não vai ficar rico. Magaldi reforça essa concepção em seu livro, dizendo que a atividade cênica nunca foi compensadora do ponto de vista financeiro, ainda que existam alguns exemplos isolados de pessoas que conseguiram fazer fortuna com a exploração do teatro: “Ao lado deles, numerosos outros crivam-se de dívidas, e terminam seus dias com a mesma insegurança do início, Só a vocação justifica a persistência de indivíduos que se sacrificam no teatro e que, fora dele, pelo talento, encontrariam ao menos a tranquilidade material.”

Sobre a peça: Em cena, um jornalista extremamente inseguro relata os momentos de nervosismo e aflição antes de entrar no palco pela primeira vez. A peça foi inspirada no livro “Queda Livre”, de Otávio Frias Filho.  No livro, cujo subtítulo é “Ensaio de Risco” o autor narra sete aventuras que viveu; experiências radicais como uma viagem ao coração da selva amazônica (onde ele bebe o chá alucinógeno do Santo Daime) ou como a sua incursão no mundo do sexo transgressivo: swing, orgias e sadomasoquismo. Dentre as experiências radicais, ele conta como foi participar de “Boca de Ouro”, dirigida por José Celso Martinez Correa em 2000 – isso depois de ensaiar apenas três vezes.

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    Otavio é interpretado por Bete, que se apresentava com o cabelo bem curto, com um terno cinza e uma gravata borboleta.  Além dela, há apenas uns panos escuros e algumas projeções que são inseridas ao decorrer do monólogo. É dado o terceiro sinal e o jornalista precisa entrar em cena, logo a sua insegurança fica visível e ele, tremendo, começa a contar como foi parar naquele lugar e como se preparou para a grande data: a estreia.

A grandiosidade na proposta desse trabalho é a capacidade analítica do personagem, que como um estranho no ninho, observa criticamente tudo o que está em sua volta. Ele se deslumbra com a naturalidade em que os atores se transformam, ele relata as dificuldades em se locomover em um palco nada convencional, comenta sobre as ordens enérgicas do diretor e analisa sua função como crítico e escritor de peças teatrais.

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A peça tem diversos momentos de humor, onde o personagem ri de si mesmo. Como quando ele narra o quase escorregão que leva no palco, que estava molhado. Ou quando comenta das incontáveis vezes em que verificou em seus bolsos os acessórios que deveria usar em cena: um jornal, um cigarro e um revolver.

A tensão psicológica do ator é um dos pontos analisados por Magaldi. Para ele, essa tensão confere ao ator uma individualidade distinta e não muito raro, leva-o a uma neurose.  Para interpretar a peça, eles podem correr o risco de transferir para a vida privada certos sentimentos que são dos personagens, por isso, antes de qualquer coisa, o ator precisa de certa contenção para estabelecer um equilíbrio satisfatório entre a vida artística e a pessoal.

Em “O terceiro sinal” Otávio defende a importância de o crítico estudar teatro, compreender o tema das peças que escreve e redigir um texto com clareza. Por outro lado, na postura de ator, ele se questiona sobre a complexidade de dizer certas palavras e em transmitir o sentido delas para o público. Então, na peça, o personagem narra as reuniões que teve com Bete Coelho e Giulia Gam para aprender a falar mais claramente. O interessante é que o que para elas parecia um exercício simples, para ele era quase um inferno. Afinal, ele se dizia bom com a escrita, mas não tanto com a fala. E além de tudo, sua timidez o desconcentrava.

 Neste ponto, as observações realizadas pelo personagem vão de encontro ao que Sábato Magaldi defende, para ele a palavra é um dos múltiplos instrumentos que podem ser utilizados para causar um maior impacto no espectador:

O ator comunica-se com o público por meio da palavra, instrumento da arte literária. Embora alguns teóricos desejem menosprezar a importância da palavra na realização do fenômeno teatral autêntico, sua presença não se separa do conceito do gênero declamado. Para o ator, entretanto, a palavra é um veículo que lhe permite atingir o público, mas não se reduz a ela a interpretação. Sabe-se que o silêncio, às vezes, é muito mais eloquente do que frases inteiras. A mímica ou um gesto substitui com vantagem determinada palavra, de acordo com a situação. Postura, olhar, movimentos – tudo compõe a expressão corporal, que participa da eficácia do desempenho. (MAGALDI, P. 4.)

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 Mais um momento brilhante de metalinguagem ocorre quando o personagem conta como foi a sua experiência em ver a sua amiga, atriz, em uma peça. De repente, ela começa a chorar desesperadamente e ele se lembra da frase de Diderot:  “As lágrimas do comediante escorrem de seu cérebro; as do homem sensível jorram de seu coração. ”. As lágrimas daquela atriz estariam escorrendo do cérebro ou jorrando do coração¿, pergunta. (Mais tarde, nos é confidenciado que Otávio assistia Bete Coelho na peça Cacilda!).

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[1]  Esta é a primeira fala da peça e também a primeira sequência do ensaio publicado no livro.

Referências:

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. (Arquivo não datado). [Acesso 10.07.2016] Disponível através do link: www.passeidireto.com/arquivo/6050117/magaldi-sabato—iniciacao-ao-teatro/1

FALCÃO, Letícia (2015):  A crítica teatral na escrita da história do teatro brasileiro: possibilidades para um debate interdisciplinar. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis. [Acesso 10.07.2016] Disponível através do link: :http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427739221_ARQUIVO_Leticiatextocompleto.pdf

KÁTIA, ANA. (2010):  Monólogo marca a estreia de grupo teatral de Bete Coelho. Jornal Estadão. [Acesso em 10.06.2017] Disponível através do link: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,monologo-marca-estreia-de-grupo-teatral-de-bete-coelho,584679

A melancolia de Pandora

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Nessa semana fui na pré-estreia de “A melancolia de Pandora”e saí de lá numa bad inexplicável. A peça conta a história de uma mulher depressiva que mergulha em suas memórias e alucinações. Ela quase nunca sai da cama e é observada de perto por três figuras: um anjo, por Doutor Rudolph Ahrisman, que se diz um libertador da mente humana e por Max (mordomo de Ahrisman). A todo momento, os pensamentos, as lembranças e as ações dessa mulher são contestadas e analisadas pelos outros personagens, que aos poucos vão influenciando-a em seu comportamento.

Como disse em outros textos publicados por aqui, poder ir a uma peça dessas me emociona muito; por diversos motivos. O principal deles é uma sensação que não pode ser materializada, é o efeito de uma mudança que tem impactado a minha vida em muitos sentidos e que me distancia das pessoas que mais amo, ao mesmo tempo em que me aproxima das coisas que mais admiro. É uma alegria que me cura a dor da distância,  um   momento que me faz acreditar que essa saudade enorme que sinto, tem um sentido… quero dizer, “um dia essa dor será útil”.

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Saí da peça muito confusa, com mais perguntas do que respostas. Cheguei em casa e precisei ler bastante para me localizar e entender o que se passou. Depois tudo fez sentido. Eu fiquei mesmo foi maravilhada com as músicas  e com o cenário que  se misturava com os atores como numa dança e ganhavam vida. A cama com rodinhas levada de um lado para o outro, o quarto que se movia e a luz que entrava pela janela criando sombras incríveis. E a roupa da mulher melancólica, um vestido que se parecia com uma camisa de força.  Eu fiquei pensando na genialidade de quem criou tudo isso e no trabalho que deve ter dado.

Como eu disse, eu fiquei bem confusa… mas saí da peça com uma sensação terrível. De tudo o que consegui entender na hora, o que mais me marcou foi o lance da “Esperança, esperança, esperança”, isso me fudeu. [Eu explico melhor no próximo subtítulo]. Outra coisa, toda hora que eu olhava para a mulher apática e a via com aqueles ombros caídos, e com os olhos meio perdidos, desanimados… eu ficava “o que isso quer dizer meu Jesus?”, daí fui ler sobre a melancolia e achei a representação tão, tão, tão perfeita! [Li um texto que relacionava a melancolia à Madame Bovary, de Flaubert].


Pandora, a caixa e a esperança (um resumo do resumo)

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Depois da peça, a primeira coisa que fui ler foi sobre  Pandora (eu precisava comprovar se o lance da esperança era o que eu tinha entendido… e era). O mito é desencadeado com o roubo do fogo por Prometeus. Antes, o mundo era povoado apenas por homens que não envelheciam, não se cansavam e não sofriam. Depois que Prometeus rouba o fogo dos deuses e o dá para os homens, Zeus se enfurece e promete castigá-lo.  Com a ajuda de Atena e Hefesto, cria uma mulher chamada Pandora (dotada de beleza e sedução, porém com a capacidade de mentir e enganar) e a oferece para Epimeteu (irmão de Prometeus). Ele se apaixona por ela e se casa. Pandora trazia consigo um jarro presenteado por Zeus e estava proibida de abrí-lo. Ela não resiste a curiosidade e o abre, liberando uma série de males que os homens até então desconheciam:  a doença, a guerra, a velhice, a mentira, os roubos, o ódio, o ciúme… Assustada, ela fechou a jarra tão rápido quando pode e lá só restou uma coisa: a esperança.

  • A esperança pode ser encarada como uma coisa boa ou ruim, pelo que entendi… Nietzsche (1844-1900) em Humano, Demasiado Humano, escreveu que “Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”.

Freud explica: O luto e a melancolia

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Então eu pulei para a segunda parte, já tinha entendido um pouco o lance da esperança, mas não tanto o da melancolia.  Eu acompanho o site do Lê livros semanalmente, achei coincidência que há poucos dias compartilharam o livro “Luto e Melancolia” de Freud. Pensei, “Caralho, é disso que preciso!” Comecei a leitura com muito medo, imaginando que não iria entender nada, mas até que compreendi algumas coisas. Antes, eu tenho que reconhecer o meu apreço por quem o editou, pela introdução, pelas análises e pelo posfácio, que foram fundamentais para que eu conseguisse entender: A introdução foi feita por Marilene Carone e há outros três textos, feitos por Maria Rita Kehl, Modesto Carone e Urania Tourinho Peres.

Enquanto lia esse livro, flashes da peça voltavam a minha memória e tudo ia se encaixando. Especialmente a representação da mulher. Eu li este livro pelo celular mesmo e para vocês terem uma ideia, fiz 86 marcações.

O luto e a melancolia se assemelham em algumas situações, porém a melancolia vai um pouco além. Nos dois há a dor de perder um objeto, mas o melancólico não sabe muito bem o que perdeu.  O luto é a reação de perder uma pessoa querida ou de uma abstração que possa ser colocada no lugar dela (como um ideal, a liberdade, a pátria).Na melancolia há uma predisposição patológica, veja só: “A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição”.  “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego”.

-No  luto, a pessoa consegue pensar que está menos triste, consegue ir se desapegando do objeto perdido. Na melancolia, a batalha é mais acirrada em função da ambivalência, que pertence em si mesma ao reprimido.

a-melancolia-de-pandora-bete-coelho-djin-sganzerla-andrc3a9-guerreiro-lopes-e-ricardo-bittencourt-foto-jennifer-glassNa peça, a mulher sofre por perder alguém e sempre fala de um amor que viveu… mas fala desse amor de uma forma meio confusa, como se não soubesse muito bem como o perdeu. Ela também menciona os pais, representados  por dois bonecos, meio fantasmagóricos, que vivem em seu quarto (nossa, muito massa). O livro explica que a melancolia está muito relacionada aos sentimentos que o melancólico alimenta por outra pessoa, a quem o doente ama, amou ou deveria amar:

“Dessa forma, tem-se a chave do quadro clínico, na medida em que se reconhecem as autorecriminações como recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o próprio ego. A mulher que ruidosamente se apieda do marido por estar ele tão ligado a uma mulher tão incapaz, na verdade quer se queixar da incapacidade do marido, em qualquer sentido que esta possa ser entendida.” Para o melancólico, queixar-se é dar queixa: “Eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos no fundo dizem de outrem.”

Daí surge uma reflexão muito interessante: o narcisismo dessa patologia. Freud trabalha muito com essa questão do ego e da libido.  Numa espécie de sadismo, o melancólico (numa tendência  ao ódio), tenta vingar-se do objeto amado através da autopunição,  “ele atormenta os seus seres amados através da condição de doente, depois de ter cedido à doença para não ter de mostrar diretamente a eles sua hostilidade”. “Freud estranha que falte ao melancólico o sentimento de vergonha comum aos arrependidos, aos que de fato se consideram indignos e sem valor. Se estes se escondem e tentam fazer calar sua culpa e seu crime, os melancólicos parecem sentir necessidade de alardear suas baixezas”.


Onde nos encaixamos nisso?

Stuart Hall explica: a identidade  cultural na pós modernidade

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Ainda sobre Freud: ” Vem daí a importância do papel representado pelo melancólico, como um sujeito que teria perdido seu lugar no laço social e sente necessidade de reinventar-se, no campo da linguagem. Essa perda de lugar pode ocorrer quando o sujeito não se sente capaz de adaptar-se ás exigências do outro”

Acho que Stuart Hall pode entrar nesse tema quando trata da crise de identidade (tão normal em nossos dias, dessa nossa crise de não saber onde ir, da rapidez do dia-a-dia e da solidão que sentimos, nesse lance do sujeito perder os laços sociais: Ela caracteriza-se dessa forma: “perder o sentido de sí”. Deslocamento das estruturas e processos centrais da sociedade moderna. Abalo das referências que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. As identidades modernas estão sendo descentradas, isto é: deslocadas e fragmentadas. “A identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” – Kobena Mercer

O caráter da mudança na modernidade tardia: A questão da identidade também está relacionada ao caráter da mudança na modernidade tardia, em particular, ao processo de mudança conhecido como globalização e seu impacto sobre a identidade cultural:  para Marx, a modernidade – [é o] permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eterno. Todas as relações fixas e congeladas são dissolvidas, todas as relações recém formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. “À medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da Terra”

sobre “O terceiro sinal”

Eu pensei muito se iria ou não escrever sobre a peça, depois de duas enormes publicações sobre Bete Coelho, eu realmente me perguntei se ficaria repetitiva. Provavelmente sim, mas a verdade é que pouco me importa. Eu sempre escrevo neste blog pensando em que vai lê-lo, mas penso no quanto cada um desses textos importam para mim e para a minha memória.

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Assisti a peça duas vezes, cheia de expectativas e emoções. Quando foi lançada, eu ainda morava em MG e cursava jornalismo. Li algumas passagens do livro e sempre o relacionava com o novo jornalismo e com o jornalismo literário.

No segundo dia em que vi a peça, o autor do livro estava no teatro. Dele eu fazia uma outra ideia, na minha cabeça a imagem impregnada era a de um homem alto, robusto e de cabelos escuros. Nunca parei para pesquisá-lo e jurava que era um jornalista contemporâneo do Nelson Rodrigues ou algo do tipo (isso antes de ler o livro, apenas com algumas imagens da peça na cabeça e pouco conhecedora da sinopse).Quando o vi, fiquei curiosa,, esperávamos Bete trocar de roupa. Na minha invisibilidade, eu reparava tudo o que me cercava com uma sensação louca que alterava meus sentidos, uma anestesia mesmo. Ele era baixo, com orelhas meio pontudas e bem diferente de tudo o que imaginei. Tinha cabelos brancos.

Por um momento a impressão foi quebrada, reparei uma situação meio chata e constrangedora. Não sei se todo mundo viu ou se quem viu, fingiu que não. Assim como eu também o fiz. Meus sentidos foram alterados, aquela ideia do “personagem” tinha se transformado, como se um quadro acabasse de receber uma grossa pincelada que alterasse as cores já aplicadas.

Mas isso não é tão importante. Vamos ao que realmente interessa, o livro a qual a peça é baseada se chama Queda livre e contém a narrativa de pequenas aventuras da vida dele, alguns desafios que ele se impôs. A peça fala sobre uma delas, de sua experiência como um ator não profissional. Ele participava de um trabalho do Teatro Uzyna, dirigido por Zé Celso. Era Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues.

Sabe, sempre quando penso em metalinguagem me remeto à Almodóvar. Acho bárbaro as peças e filmes que trabalham com esse recurso de uma maneira simplificada e bem finalizada. “O terceiro sinal” é um desses, é o teatro falando do teatro de uma maneira muito sensível e por vezes cômica.

P.S = Estou sentada numa sala da USP, esperando a aula começar; enquanto isso escrevo.

Voltando… eu reparei em tudo naquele dia, desde o papo das pessoas na fila, aos detalhes das marcas no palco. Eu não queria perder nada. Por exemplo, por mais que o evento tenha sido gratuito, eu senti uma falta do “povão”. Daí me lembrei de um estudo acadêmico sobre a importância da arquitetura do Palácio das Artes em BH e como essa própria arquitetura afasta mais o povo do que atrai. Na pesquisa as pessoas entrevistadas disseram que não entravam  no Palácio das Artes porque não tinham dinheiro para pagar pelos eventos, sem saber que muitos deles são gratuitos ou a preços populares.

Me impressionei muito com a tranquilidade da Bete diante daquela gente fria e ávida por uma ação. Se fosse eu, teria saído correndo bem antes das cortinas abrirem. Depois o que me impressionou foi a facilidade e o domínio com as falas, algo que sempre me remete à Anna Magnani (e não sei porque) talvez porque ela amava o teatro tão e intensamente, que se preocupava em dizer as falas com precisão quase religiosa em respeito aos escritores. [Pelo menos foi isso que li sobre ela].

A insegurança de Otávio/personagem diante da necessidade de entrar no palco é bem cômica, mas me soou mais sentimental. Aquele palco poderia ser reinterpretado de muitas outras  formas, como quando encaramos os desafios da vida: o primeiro parto de uma mulher, a apresentação de um TCC, a primeira viagem sozinha, a visita a casa dos pais do namorado, o adeus a virgindade.Do melhor que senti do personagem foi seu medo e sua vergonha, medo do insucesso, da derrota, do tombo. vergonha da voz, do próprio corpo, da falta de experiência.

A história dele é um encorajamento para que não tenhamos medo de encarar um mundo novo e desconhecido. Um lembrança das nossas condições, de que estamos sempre muito perto do fracasso e da imperfeição e que tentar já é de certa forma uma vitória.

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19:34h  – A aula começou há alguns minutos e quase caí da cadeira quando o professor falou que o tema seria: QUEDA LIVRE. Estamos estudando a pós-modernidade e alguns conceitos bem complexos como o estruturalismo, o pós estruturalismo e a reconstrução. É muita coincidência (e acreditem em mim, juro que isso tá rolando agora!) O subtítulo da aula é: “Um grão de areia no maremoto”. Agora ele menciona um texto obrigatório que relaciona a pós modernidade com a montanha russa, uma alegoria. Estou anotando tudo o que ele diz por que ainda estou incrédula sobre como esta aula está tão ligada ao que acabei de escrever sobre a peça. “Perdemos os sentidos, beijamos o céu. Insegurança na subida e quanto mais alto, maior a queda. Começamos a perder os sentidos e as certezas, depois vamos para o looping: você vira de ponta cabeça e sofre um descentramento, não sabe qual é o próximo passo, Pânico, Caos. É o fim, é o nada”

As lágrimas do comediante, disse um dia Diderot, escorrem de seu cérebro; as do homem sensível jorram de seu coração. 

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Eu esperei muitíssimo para ver Lótus (de Cristiano Trein), um curta metragem brasileiro, produzido em 2006. O lance é que o Porta Curtas é um site com um acervo sensacional, mas que nem sempre funciona (o que é muito irritante!). Foram anos procurando pelo vídeo até que, depois de uma longa pesquisa, o encontrei no Vimeo.

O filme é protagonizado por Bete Coelho (que por sinal, ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado) e Marcello Antony, os dois dão vida à Letícia e Fábio… um casal em crise. Fábio morre de ciúmes de Letícia e possui devaneios com a possibilidade de ser traído. Letícia, por outra lado, possui uma frieza em relação ao marido e tenta, de todas as formas, alimentar seu desejo sadomasoquista. Acredito que daí venha o nome do curta, todo mundo sabe que a flor de Lótus é considerada sagrada em algumas culturas, que significa pureza. O que nem todo mundo sabe é que a água que acolhe a planta normalmente é associada ao apego e aos desejos carnais.

Li muitas resenhas relacionando o filme a uma história picante e sexy. Não sei se é viagem, mas consegui perceber um tom romântico, meio de amor não correspondido. Claro, há uma sensualidade evidente, mas há uma trama muito mais cruel e profunda por trás disso tudo.  – Antes de qualquer coisa, eu achei que a Bete ficou perfeita para o papel, e é por causa dela que queria tanto assistir o filme. Ela me parece ser consciente de sua imagem e segura do que quer, tranquila para conversar sobre sexualidade sem julgamentos, sem tabus. Vejo uma força nela, algo que não me soa forçado…um pouco parecido com o que a Marisa Paredes tem.

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Em Lótus, Fábio persegue Letícia quando ela sai do trabalho e a encontra transando com outro homem. Antes disso, no dia anterior, sonhara que a matava no estacionamento do prédio. A perseguição vai ficando mais densa quando ele descobre que ela frequenta uma casa de sadomasoquismo, daí decide transar com outra mulher (talvez por vingança, por vontade ou para provocar ciúmes na esposa). Todo o filme e o jogo de gato e rato entre os dois me pareceu muito cruel, deve ser um inferno viver um relacionamento em que não se tem confiança no outro e que ainda, se disputa algo que não deve ser disputado. Há solidão demais entre os dois, um distanciamento absurdo. O masoquismo está ali, em um fazendo o outro sofrer emocionalmente.

Uma das minhas maiores referências cinematográficas sobre sadomasoquismo é A professora de piano, com a Huppert. Acredito que, mesmo não sendo tão profundamente abordado, Lótus se assemelha com o filme quando quebra alguns estereótipos por apresentar uma mulher comum, sadomasoquista. Nenhuma das duas personagens faz o tipo daquelas gostosonas, peitudas e com saltos altíssimos que ficou tão colado a nosso imaginário através da Bettie Page…