México, um país em dois olhares

mexicoAs obras de dois autores inspiraram a linha comparativa deste trabalho, eles tiveram a coragem de se aventurar a estudar o México, sua história e o comportamento dos mexicanos. Um deles foi Érico Veríssimo, que publicou o livro “México” em 1960. O outro foi Jorge G. Castañeda, autor de “Amanhã para sempre”, de 2013.

É curioso como a visão dos dois se assemelha em alguns quesitos e por vezes, se distanciam abruptamente em outros casos. Naturalmente há o distanciamento do tempo em que os livros foram escritos, mas leva-se também em consideração a linha narrativa. Enquanto o livro de Veríssimo é um romance com forte tom poético, o livro de Castañeda apresenta uma linguagem mais científica e um estudo sobre o conceito de identidade nacional. Jorge G. Castañeda é professor de uma das maiores universidades do México (a UNAM) e atuou como chefe das Relações Internacionais no governo do então presidente Vicente Fox. Em seu livro, ele confronta diversos clássicos, autores (como Octavio Paz) e questiona os estereótipos pelos quais os mexicanos ficaram conhecidos.

Érico Veríssimo foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX (e dentre suas obras famosas, cabe citar a trilogia de O tempo e o vento).  Ele realizou sua terceira viagem ao México em 1955, ao lado de sua esposa, Mafalda. Na época, dizia enfrentar um bloqueio criativo por causa da vida burocrática que levava nos EUA, ele ocupava um cargo na Organização dos Estados Americanos, em Washington.

A visão de Jorge G. Castañeda pode não ser muito agradável aos mexicanos já que ele indica grandes falhas na sociedade e, de maneira corajosa, se atreve a sugerir soluções. Apesar de uma linguagem complexa, o livro perpassa por assuntos certeiros e fundamentais sobre o país, como por exemplo: o narcotráfico e a violência.

Castañeda começa sua reflexão afirmando que os mexicanos são individualistas e o são de uma maneira diferenciada. No primeiro capítulo “Por que os mexicanos são ruins em bola e não gostam de arranha-céus”, ele explica que os mexicanos enxergam a casa própria não só como status, mas como garantia de individualidade – por isso, a pequena popularidade dos arranha-céus (ou prédios). De acordo com o autor, os mexicanos são individualistas inclusive no esporte, por isso são os melhores no Golfe  e não no futebol.  Eles evitam pegar ônibus e são individualistas até quando o assunto é democracia, sentem desconfiança em relação às ações coletivas.

 O perfil que o autor faz do mexicano é bem distante do lado romântico que Érico Veríssimo descreve. Por exemplo: Castañeda afirma que os mexicanos são avessos a qualquer tipo de confronto ou competição porque são fatalistas. Se vêem como perdedores e… já que vão perder, vale a pena lutar? O autor apresenta diversas análises e aponta algumas justificativas para esse comportamento, uma delas está na própria história do México, que foi extremamente cruel e violenta com os índios.

Para Veríssimo, o mexicano é um povo que foi traumatizado em seu nascimento e isso marcou o inconsciente coletivo do país, por isso vivem sempre angustiados “por uma sensação aflitiva de que algo de mau, algo de terrível está sempre por acontecer. O nascimento da nação mexicana foi difícil, dilacerante, sangrento, doloroso e o índio que sobreviveu à Conquista não se adaptou ao ambiente frio e hostil criado pelo invasor, ele desejou voltar ao ventre materno, isto é, a terra.”

Sobre os mexicanos e seus costumes, Castañeda explica que a população já não é tão católica como muitos pensam. Hoje, a maioria deles não vai à igreja nem vivem a religião, mesmo que se autodenominem como católicos praticantes. O escritor ainda explica que o país é extremamente marcado pelo racismo, pelo preconceito e pelas lutas de classes. Eles se dizem “mente aberta”, mas não são. Veríssimo vê a religião com outros olhos, ele possui um encantamento em relação a ternura que os mexicanos sentem pela Virgem de Guadalupe, e entende que toda essa identificação vem do fato de que a virgem, morena, teria aparecido para um índio (chamado Juan Diego na colina Tepeyac).

Em 1960, Veríssimo dizia o mesmo que Castañeda sobre as diferenciações raciais, porém em outras palavras. Para ele, o México era uma nação em que predominava o sangue índio. Ele dizia que cerca de 30% de seus habitantes eram racial e culturalmente índios enquanto a menor parte da população era formada de brancos ou de criollos, isto é, de filhos de pais e mães espanhóis, mas nascidos no México.

Os 10% que eram ou se consideram brancos viviam e pensavam mais ou menos como os brancos de qualquer outro país da América e, seus dramas e neuroses relacionavam-se não ao fato de serem mexicanos, mas sim de pertencerem a uma determinada classe social: “Assim, o que na minha opinião melhor representa o México, é o de sangue espanhol de índio, não só porque ele constitui a maioria da população, mas também e principalmente porque dá a nota tônica na vida do país”.

E a relação com os Estados Unidos também é tema para estudo nos dois livros. Veríssimo não deixa de citar a famosa frase de Porfírio Diaz que dizia: “Pobre Mexico, tan lejos de Dios y tan cerca de los Estados Unidos”.  Já Castañeda, utiliza a famosa frase em introdução ao assunto: “Nós não atravessamos a fronteira, a fronteira nos atravessou” Sobre essa relação, os dois autores concordam em um ponto: por parte dos mexicanos, há uma mistura de raiva e admiração.

Mesmo com linguagens tão diferentes, os dois autores se mostram carinhosos e respeitosos em relação ao país, eles não economizam palavras ao falar das cores, da arquitetura, dos pintores, da história e das músicas mexicanas. Muito se pode descobrir através da visão deles e é difícil não se envolver na leitura desses livros.

México – Parte 2

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Dando continuidade à publicação sobre o livro escrito por Erico Veríssimo, México, vamos às citações:

 “Quem quer que haja vivido um pouco, deve ter concluído que, assim como existem corpos predispostos à tuberculose, há  almas predispostas ao amor. No primeiro caso basta um golpe de vento. No segundo, uma simples troca de olhares.”

‘Esse país americano, conquistado e colonizado por espanhóis, com uma tremenda percentagem de sangue índio, já teve um imperador austríaco e uma corte francesa.”

“Uma cena me ficou na memória com uma nitidez inapagável. Parados no meio-fio duma calçada, no Paseo de la Reforma, vejo passar o enterro de um bombeiro que se suicidou. Os tambores, cobertos de crepe, estão abafados e soam surdos. Não se ouve seques um  toque de clarim. Atrás dos tambores marcham alguns pelotões. Os solados, de uniforme negro, gola carmesim, crepe no braço, marcham em cadenciado silêncio. E sobre um carro também coberto de preto está o esquife cinzento envolto na bandeira mexicana.  Pla-ra-ta-plan! Pla-ra-ta-plan! Lá se vai o cortejo rumo do cemitério. Haverá outro país no mundo em que um velório seja mais velório, um enterro mais enterro, e a morte mais a morte?”

“Agora o cantor grisalho, ventrudo e cinquentão diz que não vale nada, pois chorando a vida começa e em choro a vida se acaba.”

(Sobre o Barroco Mexicano): “Se os índios fossem capazes de expressão literária, seu protesto escrito teria encontrado pela frente a barreira formidável da Inquisição. Povo plástico por excelência, o mexicano achou sua forma de expressão na arquitetura e na escultura. Mas não teriam os frades percebido a silenciosa, sutil reação? Acho que perceberam e que não só toleraram como também sabiamente encorajaram essas inocentes heresias, como parte de sua técnica de catolização do gentio. Essa “tolerância” continuou através do tempo e culminou na aceitação por parte da Igreja da Nossa Senhora de Guadalupe, a Virgem índia. É aqui em Puebla que se encontram os melhores espécimes do barroco mexicano, do churrigueresco e do plateresco.”

“Minha companheira declara-se fascinada pela sonoridade de alguns nomes mexicanos.Guadalajara…Jalisco…Cuernavaca…Acapulco…Querétaro…Churubusco, Chapingo…Hermosill…Manzanillo…Polanco…Xoxhimilco.”

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“Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, de modo que inventou a semana. Para passar o weekend não sabemos como se arranjou. Agora, segundo dizem, passa o fim de semana em Cuernavaca, que possui um clima privilegiado. Alguns habitantes do México e alguns visitantes do país vizinho são da mesma opinião de Deus.”

(O Povo): “O México é uma nação em que predomina o sangue índio. Cerca de 30% de seus habitantes são racial e culturalmente índios. A menor parte da população, uns 10%, é formada de brancos (sempre escrevo essa palavra com dúvidas e reservas), de criollos, isto é, de filhos de pais e mães espanhóis  mas nascidos no México, e de um bom número de pessoas oriundas de vários países europeus e dos Estados Unidos. Os 60% restantes são mestiços. O índio é o elemento passivo da população, constitui uma espécie de silencioso, imóvel coro da tragédia nacional. Sua capacidade de apagar-se não é apenas psicológica ou sociológica, mas também física, pois por um curioso mimetismo defensivo, como o de certos animais, o índio mexicano como que consegue diluir-se na paisagem.

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Jalisco

Os 10% que são ou se consideram brancos vivem e pensam mais ou menos como os brancos de qualquer outro país da América e, seus dramas e neuroses não vêm, acredito, do fato de serem mexicanos, mas sim de pertencerem a uma determinada classe social e viverem neste século e nesta hora. Assim, o que na minha opinião melhor representa o México, isto é, o de sangue espanhol de índio, não só porque ele constitui a maioria da população, mas também e principalmente porque dá a nota tônica na vida do país. Compreendê-lo, portanto, será compreender o México.

(A língua): Se o espanhol da zona das Caraíbas tem a doçura e a consistência do melado, o que se fala no México é igualmente fluído e doce, embora muito mais claro. É um castelhano com mel e uma  pitadinha de Chile. Quem quer que tenha ouvido Cantiflas terá uma ideia da fala do mexicano, do povo, com sua entonação musical, sua abundancia de diminutivos, a sua qualidade pirotécnica, e a ênfase em certas vogais.

O que mais me encanta na língua mexicana são os diminutivos, a coisa que o forasteiro menos espera encontrar em boca duma gente com tanta capacidade para a violência e tão pouca inclinação para a ternura. Muitas vezes parei na rua para escutar furtivamente diálogos de gente do povo. Vamos agora imaginar uma rápida conversa entre dois pelados numa pulquería:

 

-Quieres um poço de tequila, amiguito?

-Sí.

-Cuanto?

– Un naditita.

-Un tantito así?

-Eso, gracias hermanito!

– Cuando vuelves a tu casa?

-Lueguito, y tu?

– Nochecita, no más.

 

Para Veríssimo o Mexicano é um ser angustiado:

-Se você tivesse de fazer a psicanálise do povo mexicano, como explicaria essa sensação angustiosa de insegurança e inquietante em que ele parece viver? (…)

– Por causa de um trauma de nascimento que marcou fundamente o inconsciente coletivo deste país, deve ser o responsável por essa neurose de angustia que domina o povo mexicano.

– E como se caracteriza essa angústia?

-Por uma sensação aflitiva de que algo  de mau, algo de terrível está sempre por acontecer. O nascimento da nação mexicana foi difícil, dilacerante, sangrento, doloroso.

– E como se portou o recém-nascido?

– O índio que  sobreviveu  à Conquista não se adaptou ao ambiente frio  e hostil  criado pelo invasor: desejou voltar ao ventre  materno, isto é , à terra.

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(Morte): No México a morte é uma espécie de concumbina, uma companheira que cada homem carrega consigo por toda a parte e todas as horas. O mexicano exibe sua morte como efeito, uma joia. Diante vem essa atitude diante a morte? Do espanhol não é, porque este, embora tenha seus namoros com a Parca, não a vê sem temor e não deixa nunca de encará-la como um símbolo de aniquilamento, a despeito de seu catolicismo. Acho que o mexicano deve essa tendência ao componente de índio de seu caráter. Para o índio pré-cortesiano, o além-túmulo não prometia torturas ou castigos. Os astecas aceitavam a ideia da imortalidade,. Para eles a força vital continuava depois da morte. O próprio comportamento da natureza não seria indício disso? Não se sucediam as estações? O sol (símbolo da força e da vida), o Sol que desaparece engolido pela noite não tornava a aparecer na manhã seguinte? (…) A morte pois, não significava destruição, mas transformação, era uma fase dum ciclo infinito. A morte, portanto, não é eterna, mas efêmera. É um perene rejuvenescimento da vida. Isso explica a alegria com que caminhavam para a morte aqueles belos jovens sacrificados a Texcatlipoca, o deus da eterna juventude. Os maias chamavam os recém-nascidos “prisioneiros da vida”.

 

Se a morte é a maior fonte de angústia do homem, e se o mexicano não a encara com horror, de onde vem o drama de que está saturada a vida desse povo? Eu diria que vem da própria angústia de viver, da fatalidade da vida. Há uma espécie de morte que o mestiço teme: a morte social, o horror de não triunfar, de não subir, de ficar por baixo, ignorado e sem nome. Se um cristão o ordinário teme os demônios do Inferno além-túmulo, o que o mexicano teme são as forças demoníacas deste mundo cheio de influências  mágicas, em sua maioria maléficas. A morte – parece ele dizer- é certo; o  incerto é a vida.

México – Parte 1

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Você descobre o que é boa literatura, quando lê um livro parecido com México, do Érico Veríssimo.  Desde o surgimento do La Amora, demonstro uma admiração e carinho por esse país, mesmo sem nunca tê-lo visitado (e ainda um pouco longe de fazê-lo). Com a narrativa de Veríssimo e com sua delicadeza e atenção aos pequenos detalhes, fiz uma viagem sem ter, de fato, saído de casa.

Foram dois deliciosos meses de leitura, agregados com a vontade de não terminá-lo. Com um texto claro, dinâmico (dividido em diversos subtítulos) e sensível, Veríssimo construiu um retrato do México dos anos 50 difícil de não se apaixonar (o livro foi escrito em 56/57). O retrato, no entanto, contém um misto de realidade e fantasia que acentuam a percepção de que “Sim, o México é um país mágico”.

A cada descrição (das ruas, do povo, das igrejas, dos museus, da cultura, da religião, dos mitos, da língua…) me senti como se estivesse andando de mãos dadas a Veríssimo, observando junto com ele, todos aqueles monumentos. A viagem se inicia por Juarez e logo é marcada por um acidente. Veríssimo e a esposa decidiram viajar para o México de trem (na época, os dois viviam nos EUA), mas o trem descarrila, ferindo diversos passageiros e deixando os viajantes parados no meio do deserto. Depois de muito esperar, conseguem continuar a viagem e passam por Chihuahua, que segundo Veríssimo, com sua seca e miséria, lembra o nordeste brasileiro.

México

E aqui nos vamos por entre as relíquias, já com essa pressa cretina do turista profissional que não visita os lugares porque deseja realmente vê-los, mas sim porque quer ter o direito de mais tarde dizer aos outros e a si mesmo que os viu”.

Mas Veríssimo não é esse turista profissional, de maneira alguma. Tanto não é que escolhe viajar e conhecer os estados mais distantes da capital, as cidades do interior (Puebla, Cholula, Oxaca, Taxco) porque acredita que é ali que está a verdadeira essência de um povo. E ele não tem pressa, demora, observa os detalhes e os estuda, sem a ânsia de acabar.

Em um grande e encantador capítulo, Veríssimo conta a história do México, defendendo a ideia de que foi nessa época (sangrenta e obscura) em que nasceram duas grandes características propícias do mexicano: o drama e a desconfiança. Em sua concepção, a Conquista foi tão violenta que é possível construir uma metáfora, a atitude dos espanhóis para os mexicanos, através da principal figura: Hernán Cortes é parecida com a de uma pessoa estuprada diante do estuprador, “aquele abusa de maneira violenta e traumatiza da terra virgem”.   

  “Pobre México! Tão lonDiego-Rivera-The-Flower-Carrierge de Deus e tão perto dos Estados Unidos!”

Através de sete colóquios, em que reconstrói  conversas que teve com José Vasconcelos, Veríssimo dá uma pincelada sobre a história mexicana, perpassando pelos momentos mais importantes, como por exemplo, a revolução de 1910. Mas o texto não é só descritivo, é também analítico, crítico. Veríssimo delimita e mapeia o perfil de grandes personalidades (políticos, artistas) e se posiciona sobre cada um. Madero, Zapata, Pancho Villa, Victoriano Huerta, Carranza e artistas como  Orozco, Diego Rivera, David Alfaro Siquieros – Todos tem seu lugar na obra.

Mas é o povo que encanta Veríssimo, é o índio, o mestiço, as mulheres, os meninos, as cores, as igrejas, a fé. O autor analisa e descreve aspectos que para ele são os de identificação do mexicano, seja o patriotismo, a relação com a morte, língua, as gírias, a Virgem de Guadalupe. Ele sente e percebe o mexicano pulsante, aquele que está longe do idealismo.

Na segunda parte, reproduzirei algumas citações interessantes. E aqui, no vídeo abaixo, coloco uma das músicas que Veríssimo escutou logo que chegou no México, uma música que, por sinal o deixou inquieto. Conta a história de um homem (o preso número 9) que descobriu a traição da mulher com o melhor amigo e acabou os matando. O preso número  9 está prestes a ser executado. Ele, no entanto, não demonstra raiva ou medo, pelo contrário: está satisfeito. Porque conseguirá perseguir os amantes por toda a eternidade.

Do diário de Silvia

Do diário de Silvia foi escrito por Erico Veríssimo em 1961 enquanto ele se encontrava em Virginia, Estados Unidos. O diário encontra-se nos últimos capítulos de o ‘O arquipélago’ (que compõe a trilogia de ‘O tempo e o vento’ – formado também por ‘O Continente’ e ‘O Retrato). No livro, escrito em primeira pessoa, Silvia relembra a infância e expõe a vida conturbada que teve com a mãe, a ausência da figura paterna, o insucesso do casamento com Jango e também fala do amor proibido que sente pelo cunhado: Floriano.

Em seus textos, há uma interlocução com vários personagens de ‘O tempo e o vento’ (como o seu padrinho Dr. Rodrigo,  Dinda – já com 85 anos e completamente cega, o comunista Arão Stein, Tio Bicho e Zeca). Com grande dose de subjetividade, Silvia conta sobre seus pesadelos constantes com a mãe, sobre seus abortos e sua intensa relação com a terra. Outro aspecto interessante é que a história se passa na década de 1940 e há diversas menções a acontecimentos históricos como a implantação do Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial.

Fiquei encantada pelo livro! Principalmente porque logo na primeira página, Silvia reflete sobre o hibridismo humano. Passei a lê-lo intensamente e marcar as passagens que me pareciam mais belas, das quais, tomo a liberdade de reproduzir:

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– Isso prova que, como todo o mundo, tenho dupla personalidade. Agora sou a que escrever e depois serei a que lê. Qual! Tenho muitas Sílvias dentro de mim. Cada vez que eu reler estas páginas, serei outra. E cada uma dessas outras será diferente da que escreveu.

-Em certos momentos, chegamos a ter até um certo orgulho de nossas tristezas e infelicidades, e usamos essas ‘desgraças’ para comover os outros e arrancar deles piedade ou amor. (Não quero piedade, quero amor). Em suma, uma chantagem. Um caso parecido com o da Palmira Pepé, que há anos anda pelas ruas da cidade manquejando, choramingando e mendigando. Quando os médicos querem curar-lhe o defeito da perna, a Palmira recusa, alegando que, se sarar, não terá mais razão de pedir esmolas.

-Afinal de contas, onde está mesmo Deus? Não sei. Sinto que ainda não o avistei. Se Ele me conceder a graça da Sua presença, estou certa de que minha vida mudará para melhor. Em suma, necessito que Deus exista.

– Temos a tendência de classificar as pessoas como os naturalistas classificam as borboletas, feito o que as espetamos com um alfinete contra um quadro… e pronto!, passa a ser peças do nosso museu particular. Acho que foi isso que Jango fez comigo. Não quero fazer o mesmo com ele.

-Por que escrevo todas estas coisas que ninguém, mas ninguém mesmo, deverá nem poderá ler a não ser as outras Sílvias?

-Eu gostaria de compreender melhor as outras pessoas. Seria um modo indireto de me compreender a mim mesma. Gosto de gente. Desejo que os outros gostem de mim. A minha vida não teria sido, toda ela, uma busca de amor?

-Gostamos de nos imaginar bons e generosos. Mas se nos debruçarmos sobre o poço de nossos sentimentos e desejos mais secretos, esse túnel vertical onde se escondem nossas maldades, mesquinhezas, egoísmos e misérias – estou certa de que não reconheceríamos a nossa própria face refletida na água do fundo.

– Quando mamãe morreu, meus olhos permaneceram secos. Eu, que me comovo com facilidade com as histórias tristes imaginárias que leio em romances ou vejo no cinema, não tive lágrimas para chorar a morte da criatura que me deu o ser. O que eu senti foi uma espécie de alívio, mas um alívio doloroso, desses que dilaceram o peito. [Mas Sílvia, você cuidou da sua mãe durante toda a vida]. Eu queria ter feito por amor o que só fiz por um sentimento de dever. É isso que me dói.

-Um talho pode não doer muito na hora em que é produzido, mas deixa uma cicatriz que, bem ou mal, a gente carrega vida em fora… Uma cicatriz que em certos dias comicha e nos leva a pensar na pessoa que nos feriu. [Ainda com rancor?] Não, Zeca, mas com uma enorme tristeza. Porque não podemos deixar de perguntar a nós mesmos se a feria era necessária.

-O fato de acreditarmos em Deus não elimina necessariamente todas as nossas dúvidas a respeito da vida e mesmo do próprio Criador. Eu cá tenho as minhas ‘diferenças’ com Deus. Qual é o filho que não briga de vez em quando com o pai? Isso significa que ele deixa de amar o Velho? Ou que cessa de acreditar na sua existência? Ou na sua bondade? Está claro que não. E vou te dizer outra coisa importante. Levantou-se, aproximou-se da panela, apanhou outro pinhão, descascou-o e ficou a comê-lo com ar distraído, como se tivesse esquecido do que ia dizer. Depois, tornou a sentar-se a meu lado e disse baixinho: “Olha. Os grandes arranha-céus têm a capacidade de oscilar com o vento… Sabias? Pois é. Se não oscilassem, viriam abaixo. Assim é a fé. Uma fé dura e inflexível pode transformar-se em fanatismo ou então quebrar-se. A fé que se verga como um junco quando passam as ventanias, essa resiste inata. Portanto, não te preocupes. Continua a duvidar. Deus está acostumado a essas nossa fraquezas”.

-O Bento é um tipo de herói cuja presença e valor ninguém nota, porque ele atomizou, fragmentou seu heroísmo em dezenas de milhares de pequenos gestos e atos cotidianos através de toda a sua vida, de tal maneira que eles não deram e não dão na vista.

– Estou de acordo com Stein num ponto. Não é com caridade que se vai conseguir melhorar a vida dessa pobre gente, mas com uma reforma social de base.  Na minha opinião, porém, a solução não está nos métodos stalinistas. Alguém escreveu que o mal de nossas revoluções é que elas começam com a violência, para imporem um ideal, mas depois o ideal fica esquecido e permanece apenas a violência.  E como é fácil recorrer a brutalidade!  Como é natural! Como isso está de acordo com a nossa condição animal. Parece fora de dúvida que a violência goza de mais popularidade que a persuasão.

Do diário de Silvia/ Erico Verissimo – 2. ed – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.