Transamérica

Uma mulher presa no corpo de um homem. Quantas vezes já não ouvimos essa história? Inúmeras; e o cinema está aí, pronto para recontá-la sempre que for preciso. Em Transamérica, filme independente produzido em 2005 por William H. Macy e dirigido por Duncan Tucker, a atriz Felicity Huffman encarna um transexual que enfrenta várias dificuldades para realizar uma vaginoplastia (cirurgia de mudança de sexo).

Semanas antes do processo cirúrgico, Bree (Huffman) descobre que quando ainda se comportava como homem engravidara uma colega de faculdade. Seu filho, Toby (interpretado por Kevin Zegers) busca incessantemente pelo pai, que conhece como “Stanley” e pretende morar com ele. Bree conta sobre a existência do filho para sua psicóloga e mostra-se desinteressada em ajudá-lo, principalmente porque Toby é um garoto problema e foi preso por venda de drogas. A psicóloga percebe que Bree precisa resolver essa questão familiar e decide: só permitirá que Bree realize a cirurgia depois que ela se encontrar com o filho. Sem opções (principalmente porque o convênio médico está vencendo), Bree decide viajar para a cidade natal e não só encontrar o filho como também reencontrar a família.

ImagemBree é a típica personagem que nos deixa incomodados. Não por sua condição, mas pela forma que a enfrenta. Desajeitada, ela afirma várias vezes que não possui amigos, não gosta de ser vista e tenta passar despercebida nos lugares. Mas, como não percebê-la? Bree é triste, tem um grito preso na garganta, é  orgulhosa e extremamente vaidosa. É aquela pessoa que já acostumou a apanhar, que já acostumou a perder e que pede desculpa por existir (e ser quem é).

Enquanto isso, Toby pulsa a cada segundo de vida. Ele está afogado na lama mas alimenta o desejo de ser um astro famoso.  Sua agressividade é uma provável tentativa de autodefesa, afinal, Toby foi rejeitado desde o nascimento e aprendeu a lidar com as perdas muito cedo. Sua mãe, uma lésbica depressiva, se suicidou; antes disso se casou com um homem agressivo. Toby passou por lares adotivos, não fez amigos, não tem um lar ou família. A única referência de Toby é uma foto antiga do pai e em seu imaginário, Stanley é não só o símbolo de proteção, mas também de virilidade.

A abordagem sobre a transexualidade em Transamérica (aliás, que título sensacional, não?) é, na verdade, um aspecto secundário. A principal premissa do filme é a relação entre pais e filhos – que é extremamente complexa e imperfeita para todos os personagens. Quando Bree reencontra os pais, ela se depara novamente com o passado, com o tempo em que ela ainda era homem e que a mãe insiste em relembrar. Os diálogos entre Bree e a mãe são os melhores, imperdíveis!

transamericaO filme, que é um “road movie”,  tem um fotografia belíssima e diálogos extremamente  densos.  Ponto positivo para o roteiro. Quanto às atuações, não há o que questionar. Kevin Zegers está perfeito para o papel, tão selvagem e violento que não deixa dúvidas quanto ao seu talento. Sobre Felicity Huffman, um incontestável e belíssimo trabalho. Não é atoa que Huffman recebeu indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro; sua atuação é visceral, do início ao fim.

Sobre Huffman ainda há algo a dizer: por muito tempo ela foi colocada em segundo lugar nos filmes americanos, sempre com papéis pequenos de antagonistas e, por pouco não passou desapercebida. Huffman é maravilhosa e não deixa a peteca cair em cenas extremamente complexas. Em Transamérica ela apresenta um cuidado com a postura, uma preocupação com a voz e não se importa em aparecer “feia” em tela. Outra que também merece destaque é Fionnula Flanagan que encarna a mãe de Bree, um personagem amável e detestável ao mesmo tempo.

Normal

Amor, Casamento, Aceitação, Sexo, Mudança
Amor, Casamento, Aceitação, Sexo, Mudança

Quando achei que a Jessica Lange não podia me surpreender mais, encontro disponível na internet “Normal”, longa produzido em 2003 pela HBO. Com muita delicadeza, o filme dirigido por Jane Anderson (e que traz Tom Wilkinson e Richard Bull no elenco) explora uma discussão antiga e complexa: a transexualidade. Apesar do assunto não ser uma novidade, a troca de sexos continua sendo motivo de grandes discussões políticas e representações cinematográficas. No filme “A Lei do Desejo” (de 1987), Carmen Maura interpretava Tina, um homem que mudou de sexo para manter um caso incestuoso com o pai. Também não muito distante Felicity Huffman protagonizou em 2005 “Transamérica”, longa em aparecia como um transexual que lutava para realizar a cirurgia de troca de sexo.

Mas, diferente das bizarrices de Almodóvar ou da abordagem quase visceral de Duncan Tucker, “Normal” é extremamente leve. Vemos Roy Applewood, um senhor casado e com filhos que decide assumir a transexualidade. Ele cria um embate com a conservadora cidade onde mora e passa a conviver com a hipocrisia, com o preconceito dos colegas do trabalho e com a incompreensão da família. A imagem de Tom Wilkinson, vestido de mulher me lembrou muito o cartunista brasileiro Laerte Coutinho. Para quem nunca viu, há uma entrevista maravilhosa que Coutinho cedeu a Marília Gabriela onde fala do seu trabalho e de suas experiências como transexual. Recentemente, Laerte tomou uma atitude polêmica: entrou na justiça para ter o direito de usar o banheiro feminino.

{A revelação}

Logo no início do filme, o casal Roy e Irma Applewood (que comemoram 25 anos de casados) reúnem-se com o padre da igreja para conversar sobre a relação. Após uma benção, o padre questiona se está tudo bem ou se há alguma coisa interferindo na vida sexual dos dois. Inesperadamente, Roy (um senhor na casa dos cinquenta anos) não consegue segurar as lágrimas e confessa: “Sou uma mulher presa no corpo de um homem e quero fazer uma cirurgia para trocar de sexo”.

Em princípio, tanto o padre quanto a Irma não acreditam naquela conversa. Porém, quando cai na real de que tudo aquilo é verdade e de que o marido está decidido a fazer a cirurgia, Irma abandona a sala e termina a reunião. Já em casa e incrédula começa a confrontar o marido com perguntas duras e diretas: “Quando você transava comigo, era um homem ou uma mulher?” De maneira sincera e compreensível, Roy responde que em várias vezes, durante o sexo, se sentia como mulher.

- Eu não quero desculpas, eu quero o meu marido de volta!-Você não pode tê-lo de volta.
– Eu não quero desculpas, eu quero o meu marido de volta!
-Você não pode tê-lo de volta.

Ironicamente, a filha do casal (interpretada por Hayden Panettiere, ainda bem novinha) possui trejeitos masculinizados, não gosta de usar roupas de meninas e não tem paciência quanto à menstruação. Irma faz de tudo para que ela não saiba do que acontece com o pai, mas há situações que não podem ser evitadas. Sem delongas, Irma manda Roy para fora de casa e implora para que ele repense suas “escolhas”. Acontece que Roy chegou ao ponto de não conseguir negar-se mais, chegou ao fundo do poço, estava com algo entalado na garganta e aquele era o momento de se libertar.

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{Transformação}

Roy conversa o chefe para informá-lo que daquele dia em diante, passaria a se vestir como mulher. O chefe lentamente entende que Roy está falando a verdade e apesar de incompreender a situação, decide mantê-lo no cargo. O chefe vai até a casa de Irma para perguntar se aquilo está realmente acontecendo. Após uma conversa familiar, os dois trocam olhares e surpreendentemente, se beijam. Logo se separam e brincam: “Não daria certo” – o que não é verdade já que os dois passam a ter um caso. Brilhantemente, o filme explora não só a sexualidade de Roy, mas também a sexualidade de Irma. Depois de assumir-se transexual, Roy deixa claro para a mulher que o sexo é uma necessidade natural do ser humano, portanto, ela tem o direito de transar com outros homens (já que ele vai realizar a cirurgia).

Roy passa a tomar hormônios, fica mais sensível, os seios crescem, assim como os cabelos. Nesse meio tempo Irma entra na menopausa e os dois enfrentam juntos, as mudanças corporais. Em uma cena divertida e ao mesmo tempo bela, Roy ouve som no carro e tenta cantar com voz de mulher. No dia seguinte, quando chega de brincos no serviço, um de seus colegas o obriga a tirá-los. Entre socos e pontapés, Roy impõe-se e mostra que a partir daquele momento, teria que ser tratado com respeito.

{Aceitação}

O filme, na verdade, não explora o que aconteceu com Roy antes da “revelação”. Há poucos lampejos e referências a uma infância em que ele, ainda menino, pegava as roupas da mãe para se transvestir. O enfrentamento com o pai, em uma festa de família tornou-se o ponto alto da representação de seu sofrimento. Durante os parabéns, o patriarca da família relembra o quanto Roy era diferente dos outros. Humilha-o diante dos irmãos, da filha e da mulher. Roy esquiva-se da sala. Tempos depois, Irma o encontra no celeiro, com uma espingarda apontada para o pescoço.  Diante do êxtase emocional percebe que não conseguiria perder o marido, não conseguiria vê-lo morrer.

Irma Jessica Lange

Após a possibilidade da perda, Irma permite a volta do marido a casa e passa a conviver pacificamente com a mudança.  Em uma cena belíssima, Irma opina sobre as escolhas de roupa do Roy. Ele, já vestido de mulher, agradece o apoio. E ela responde: “Você faria o mesmo”. Os diálogos são uma lição de amor e cumplicidade, de que o amor (o verdadeiro) vence as dificuldades do dia-dia.

Pouco tempo depois Roy e a família vão à missa. Os integrantes passam a encará-lo e ele, respeitosamente se ausenta da Igreja. Com certeza, esse é um dos pontos positivos do filme: a diretora trata com compreensão a incompreensão das pessoas diante a transexualidade. Sem julgamentos, AndersonRoy Tom Wilkinson mostra que nem todo mundo entende o que acontece com um transexual e que esse é um processo dificílimo. De alguma forma, a cena da igreja me fez lembrar uma conhecida que dizia que se estivesse com a filha na rua e visse dois homens (ou duas mulheres) se beijando, chamaria a polícia. Levei essa discussão para a aula de Política e um dos meus colegas disse uma coisa interessante: “às vezes o pré-conceito está intrínseco, a pessoa não percebe quanta maldade um ato desses representa. Em um país sério, se ela chamasse a polícia seria ela que iria presa”.

 Por último, há outra cena que me deixou emocionadíssima. A família recebe o filho mais velho. Quando ele encontra o pai (sua referencia de masculinidade) vestido de mulher, começa a julgá-lo. Os dois se esmurram pela casa até que o pai consegue convencê-lo de que o respeito mútuo é indispensável. Os dois, em lágrimas, abraçam-se na escada sala. Quando as coisas voltam ao Normal, Irma e Roy fazem sexo como homem e mulher, pela última vez.