A primeira vez em que ouvi falar em Mary del Priore foi há dois anos atrás. Ela estava presente em uma edição da Bienal do Livro em Belo Horizonte para comentar sobre seu lançamento. Por infelicidade não pude vê-la, mas guardei seu nome e desde então – também por indicação de uma professora, acompanho suas publicações.
Terminei outro dia a leitura do “Histórias Íntimas” onde Priore conta e analisa a sexualidade e o erotismo na história do Brasil. Que livro incrível, Priore apresenta uma dinamismo e constrói uma narrativa gostosa através de uma historiografia muito bem feita. A autora fala sobre aborto, pedofilia, educação sexual, mídia, carnaval, masturbação, feminismo, censura (…), e apresenta diversos aspectos sociais em um trabalho sensível e corajoso.
Com um olhar crítico, ela revela as mudanças comportamentais ao longo dos anos. Antigamente, por exemplo, era comum andar nú, fazer sexo e defecar em publico. Por quê e como a educação sobre o corpo se modificou tanto? Como o homem foi proibindo o que não era decente? Afinal, quem determinava o que era decente ou não? “Antes malcheirosos e sujos, hoje, perfumados”. Difícil sintetizar quinhentos anos de história, por isso, fica muito claro que o trabalho de Priore é uma pincelada sutil sobre a história.
Como sempre faço, durante a leitura realizei algumas anotações, marquei detalhes que me chamaram atenção. Divido com vocês as minhas anotações, um pequeno resumo do primeiro capítulo, “Da Colônia ao Império”. Prometo compartilhar depois as outras anotações.
Logo na introdução, Priore levanta uma reflexão inquietante. Ela questiona o leitor sobre a construção da sociedade brasileira em que as práticas sexuais, antes marginalizadas, se tornaram comuns: “As bancas de jornais exibem mulheres frutas. Nas propagandas, casais seminus lambem os beiços e trocam açucaradas. Nas frentes das câmeras segredos são revelados sem constrangimento. A internet abriu um universo de possibilidade para o sexo. Da pedofilia à prostituição, tudo se encontra no mercado virtual (…) Segundo pesquisas do IBGE, o número de casamentos caiu. Além disso, aumento a quantidade de mulheres mais velhas que se unem a homens mais jovens e elas procriam mais tarde, também. Se a ideia de interioridade dava consciência à vida dos indivíduos no passado, hoje, vivemos apenas o instantâneo”.
“Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas pecadoras, nuas em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com imagens, o justo morria sempre de camisola”

Capítulo 1: “Da Colônia ao Império”
Durante a Colônia, a noção de privacidade ainda estava em “gestação” – foi construída em um meio instável e precário. A ideia de privacidade e intimidade dos homens do século XVI e XVIII se diferenciava profundamente da nossa. O sentimento de coletividade sobrepunha-se ao de coletividade: fazer sexo e andar nú eram práticas que correspondiam aos ritos estabelecidos pelo grupo. “Privado” era um conceito familiar, em 1718, o jesuíta Raphael Bluteau – um dos primeiros a usar o termo, escreveu: “Privado, uma pessoa que trata só de sua pessoa, de sua família e de seus afazeres domésticos”. Palavras como “vergonha” e “pudor” não existiam no dicionário. Muitas pessoas andavam nuas, sobretudo os índios e os escravos.
1500: Desabrochar do Renascimento da Europa e a chegada dos portugueses no Brasil. Na pintura, o humanismo colocava o homem como centro do mundo e não mais Deus, descobrindo-se os corpos nus. “Nu que hoje associamos ao erotismo, mas os nossos avós não o faziam”.
Os padres e os jesuítas, desde o início da colonização, lutavam contra a nudez e contra aquilo que ela simbolizava. Para os jesuítas, a nudez dos índios era igual a dos animais, afinal, assim como os bichos, os índios não tinham vergonha ou pudor do natural. Anchieta afirmou que as índias, além de andarem peladas, não se negavam a ninguém. “Comparadas com as mulheres que nas gravuras representavam o continente asiático ou a Europa, nossa América era nua, não porque sensual, mas porque despojada, singela e miserável”.
“A associação entre nudez e luxuria provocava os castigos divinos. Ameaçavam-se as pecadoras que usavam decotes. Eis por que a luxúria foi associada a uma profusão de animais imundos: sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres lascivas. Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas pecadoras, nuas em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com imagens, o justo morria sempre de camisola. O pecador, despido! Enterravam-se as pessoas vestidas, para ressuscitassem com roupas que as identificassem”.
Os seios: As chamadas “tetas” só tinham uma função, a produção do leite: “Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso.” Os seios não eram vistos como algo sensual, mas algo ligado ao pudor da maternidade. Ao longo dos anos os seios começaram a ser cobertos: “E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite- que antes expunha os bicos – desaparecem de oratórios e igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo”.
Banho: Nas civilizações antigas o banho estava associado ao prazer: vide as termas romanas. Os primeiros cristãos quiseram acabar com a frequentação (aos conhecidos “banhos bordéis”), religiosos eram proibidos de comparecer a esses locais (…). Brasil: Enquanto os índios davam um exemplo de higiene, os europeus eram impedidos de nadarem nus, eram não só perseguidos como também obrigados a pagarem multas. Não tomavam banho, “as películas nauseabundas, que os antigos acreditavam funcionar como verniz que atuava contra doenças, na verdade bloqueava as trocas aéreas, necessárias ao organismo”.
“Hábitos de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os habitantes da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a limpeza”. Rostos, mãos, braços, peitos e pernas raramente recebiam uma lavada. Os quartos (ou leitos) raramente eram abertos ou purificados, também não ficavam expostos ao sol – as camas ficavam úmidas de suor.
Perfume: As mulheres usavam perfumes que remetiam a odores de animais, “haviam neles um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor”. Ou seja, o perfume não era usado para mascarar o cheiro, mas para sublinhá-lo. Os cheiros íntimos agradavam. O poeta Gregório de Matos, por exemplo, chegou a criticar a mulher que se lavava antes do ato sexual:
“Lavai-vos quando o sujeis
E porque vos fique o ensaio
Depois de foder lavai-o
Mas antes não o laveis”
(1790) Na Europa esse conceito foi se transformando, o odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceira e de prostitutas velhas. Aqui a sensibilidade ao cheiro também foi se instalando, há registro de processos de divórcio, por parte de cônjuges que não aguentavam o odor do parceiro. Apesar da sujeira estar em toda parte, as pessoas apontavam-na com o dedo e começavam a se incomodar. Sobretudo, defecar e urinar em público, expondo as partes íntimas, chocava.

As casas: As moradias era bonitas por fora, mas raramente eram limpas por dentro. Os aposentos eram varridos por uma vassoura feita de bambu. Água no chão? Nunca. “A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar o mau cheiro, costumavam usar substâncias odoríferas antes de dormir”. Penicos estavam por toda a parte e seu conteúdo era jogado na ruas e praias. A privada era um luxo que ninguém tinha. “Entre nós o penico vigorou até o século XIX, empestando o ambiente”.
Chaves eram artefatos caríssimos, portanto as portas não ficavam trancadas. As camas eram um elemento de ostentação e traduziam um alto nível de vida. Na hora da intimidade, os casais se sentiam mais a vontade nos matos, praias e campos. Longe dos olhos dos outros.
O Corpo: Os cabelos femininos, conhecidos como “crinas” eram altamente valorizados, assim como hoje. O corpo devia ser “entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco”. Morenice e robustez eram padrões de beleza.