O terceiro sinal: um monólogo sobre as experiências de um ator não profissional em sua primeira peça de teatro

Dentro de alguns minutos, sem nenhuma experiência prévia, tendo decorado o texto na última semana e tomado parte em apenas três ensaios, sem ser nem desejar me converter num ator, eu estaria me apresentando diante de uma plateia pagante num dos teatros mais mitológicos do País, sob a direção do mais histórico de seus diretores”.

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 O lançamento da Companhia BR 116 aconteceu há seis anos, em julho de 2010. A parceria entre a atriz mineira Bete Coelho e o ator baiano Ricardo Bittencourt trazia a experimentação como proposta chave do projeto, a ideia era permitir que atores trabalhassem tanto na direção quanto na roteirização de suas peças. Celebrando o início dessa caminhada eles se uniram para criar “O terceiro sinal”, uma obra com tom autobiográfico e cheia de metalinguagens.

Este trabalho inspira muitas reflexões, especialmente por se tratar do teatro falando do teatro. De início, cabe analisar a concepção da companhia. Quando a criaram, os atores pensavam em uma maneira de não dependerem tanto de patrocinadores.  Na época, Ricardo Bittencourt chegou a explicar para o jornal Estadão que a peça não recebeu patrocínio: “Estamos fazendo sem patrocínio, como um hino de amor nosso ao teatro e uma forma de a gente estar vivo, atuando, enquanto companhia, enquanto realizadores. ”

Em seu livro, “Iniciação ao teatro”, Sábato Magaldi dedica o capítulo “A Empresa” para falar exatamente sobre a importância da organização financeira das companhias e explica que ela é fundamental para manter a peça em cartaz. Neste processo, muitos artistas e estrelas acabam por se transformar em empresários, que se dedicam quase que integralmente às tarefas executivas. O autor ainda afirma que muitas companhias surgem não só como um empreendimento, mas como a possibilidade que o artista encontra de imprimir sua personalidade a seu trabalho.

Bete Coelho chega a dizer que o teatro é o primo pobre das artes e quem se entrega a esses projetos precisa se preparar porque não vai ficar rico. Magaldi reforça essa concepção em seu livro, dizendo que a atividade cênica nunca foi compensadora do ponto de vista financeiro, ainda que existam alguns exemplos isolados de pessoas que conseguiram fazer fortuna com a exploração do teatro: “Ao lado deles, numerosos outros crivam-se de dívidas, e terminam seus dias com a mesma insegurança do início, Só a vocação justifica a persistência de indivíduos que se sacrificam no teatro e que, fora dele, pelo talento, encontrariam ao menos a tranquilidade material.”

Sobre a peça: Em cena, um jornalista extremamente inseguro relata os momentos de nervosismo e aflição antes de entrar no palco pela primeira vez. A peça foi inspirada no livro “Queda Livre”, de Otávio Frias Filho.  No livro, cujo subtítulo é “Ensaio de Risco” o autor narra sete aventuras que viveu; experiências radicais como uma viagem ao coração da selva amazônica (onde ele bebe o chá alucinógeno do Santo Daime) ou como a sua incursão no mundo do sexo transgressivo: swing, orgias e sadomasoquismo. Dentre as experiências radicais, ele conta como foi participar de “Boca de Ouro”, dirigida por José Celso Martinez Correa em 2000 – isso depois de ensaiar apenas três vezes.

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    Otavio é interpretado por Bete, que se apresentava com o cabelo bem curto, com um terno cinza e uma gravata borboleta.  Além dela, há apenas uns panos escuros e algumas projeções que são inseridas ao decorrer do monólogo. É dado o terceiro sinal e o jornalista precisa entrar em cena, logo a sua insegurança fica visível e ele, tremendo, começa a contar como foi parar naquele lugar e como se preparou para a grande data: a estreia.

A grandiosidade na proposta desse trabalho é a capacidade analítica do personagem, que como um estranho no ninho, observa criticamente tudo o que está em sua volta. Ele se deslumbra com a naturalidade em que os atores se transformam, ele relata as dificuldades em se locomover em um palco nada convencional, comenta sobre as ordens enérgicas do diretor e analisa sua função como crítico e escritor de peças teatrais.

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A peça tem diversos momentos de humor, onde o personagem ri de si mesmo. Como quando ele narra o quase escorregão que leva no palco, que estava molhado. Ou quando comenta das incontáveis vezes em que verificou em seus bolsos os acessórios que deveria usar em cena: um jornal, um cigarro e um revolver.

A tensão psicológica do ator é um dos pontos analisados por Magaldi. Para ele, essa tensão confere ao ator uma individualidade distinta e não muito raro, leva-o a uma neurose.  Para interpretar a peça, eles podem correr o risco de transferir para a vida privada certos sentimentos que são dos personagens, por isso, antes de qualquer coisa, o ator precisa de certa contenção para estabelecer um equilíbrio satisfatório entre a vida artística e a pessoal.

Em “O terceiro sinal” Otávio defende a importância de o crítico estudar teatro, compreender o tema das peças que escreve e redigir um texto com clareza. Por outro lado, na postura de ator, ele se questiona sobre a complexidade de dizer certas palavras e em transmitir o sentido delas para o público. Então, na peça, o personagem narra as reuniões que teve com Bete Coelho e Giulia Gam para aprender a falar mais claramente. O interessante é que o que para elas parecia um exercício simples, para ele era quase um inferno. Afinal, ele se dizia bom com a escrita, mas não tanto com a fala. E além de tudo, sua timidez o desconcentrava.

 Neste ponto, as observações realizadas pelo personagem vão de encontro ao que Sábato Magaldi defende, para ele a palavra é um dos múltiplos instrumentos que podem ser utilizados para causar um maior impacto no espectador:

O ator comunica-se com o público por meio da palavra, instrumento da arte literária. Embora alguns teóricos desejem menosprezar a importância da palavra na realização do fenômeno teatral autêntico, sua presença não se separa do conceito do gênero declamado. Para o ator, entretanto, a palavra é um veículo que lhe permite atingir o público, mas não se reduz a ela a interpretação. Sabe-se que o silêncio, às vezes, é muito mais eloquente do que frases inteiras. A mímica ou um gesto substitui com vantagem determinada palavra, de acordo com a situação. Postura, olhar, movimentos – tudo compõe a expressão corporal, que participa da eficácia do desempenho. (MAGALDI, P. 4.)

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 Mais um momento brilhante de metalinguagem ocorre quando o personagem conta como foi a sua experiência em ver a sua amiga, atriz, em uma peça. De repente, ela começa a chorar desesperadamente e ele se lembra da frase de Diderot:  “As lágrimas do comediante escorrem de seu cérebro; as do homem sensível jorram de seu coração. ”. As lágrimas daquela atriz estariam escorrendo do cérebro ou jorrando do coração¿, pergunta. (Mais tarde, nos é confidenciado que Otávio assistia Bete Coelho na peça Cacilda!).

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[1]  Esta é a primeira fala da peça e também a primeira sequência do ensaio publicado no livro.

Referências:

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. (Arquivo não datado). [Acesso 10.07.2016] Disponível através do link: www.passeidireto.com/arquivo/6050117/magaldi-sabato—iniciacao-ao-teatro/1

FALCÃO, Letícia (2015):  A crítica teatral na escrita da história do teatro brasileiro: possibilidades para um debate interdisciplinar. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis. [Acesso 10.07.2016] Disponível através do link: :http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427739221_ARQUIVO_Leticiatextocompleto.pdf

KÁTIA, ANA. (2010):  Monólogo marca a estreia de grupo teatral de Bete Coelho. Jornal Estadão. [Acesso em 10.06.2017] Disponível através do link: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,monologo-marca-estreia-de-grupo-teatral-de-bete-coelho,584679

sobre “O terceiro sinal”

Eu pensei muito se iria ou não escrever sobre a peça, depois de duas enormes publicações sobre Bete Coelho, eu realmente me perguntei se ficaria repetitiva. Provavelmente sim, mas a verdade é que pouco me importa. Eu sempre escrevo neste blog pensando em que vai lê-lo, mas penso no quanto cada um desses textos importam para mim e para a minha memória.

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Assisti a peça duas vezes, cheia de expectativas e emoções. Quando foi lançada, eu ainda morava em MG e cursava jornalismo. Li algumas passagens do livro e sempre o relacionava com o novo jornalismo e com o jornalismo literário.

No segundo dia em que vi a peça, o autor do livro estava no teatro. Dele eu fazia uma outra ideia, na minha cabeça a imagem impregnada era a de um homem alto, robusto e de cabelos escuros. Nunca parei para pesquisá-lo e jurava que era um jornalista contemporâneo do Nelson Rodrigues ou algo do tipo (isso antes de ler o livro, apenas com algumas imagens da peça na cabeça e pouco conhecedora da sinopse).Quando o vi, fiquei curiosa,, esperávamos Bete trocar de roupa. Na minha invisibilidade, eu reparava tudo o que me cercava com uma sensação louca que alterava meus sentidos, uma anestesia mesmo. Ele era baixo, com orelhas meio pontudas e bem diferente de tudo o que imaginei. Tinha cabelos brancos.

Por um momento a impressão foi quebrada, reparei uma situação meio chata e constrangedora. Não sei se todo mundo viu ou se quem viu, fingiu que não. Assim como eu também o fiz. Meus sentidos foram alterados, aquela ideia do “personagem” tinha se transformado, como se um quadro acabasse de receber uma grossa pincelada que alterasse as cores já aplicadas.

Mas isso não é tão importante. Vamos ao que realmente interessa, o livro a qual a peça é baseada se chama Queda livre e contém a narrativa de pequenas aventuras da vida dele, alguns desafios que ele se impôs. A peça fala sobre uma delas, de sua experiência como um ator não profissional. Ele participava de um trabalho do Teatro Uzyna, dirigido por Zé Celso. Era Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues.

Sabe, sempre quando penso em metalinguagem me remeto à Almodóvar. Acho bárbaro as peças e filmes que trabalham com esse recurso de uma maneira simplificada e bem finalizada. “O terceiro sinal” é um desses, é o teatro falando do teatro de uma maneira muito sensível e por vezes cômica.

P.S = Estou sentada numa sala da USP, esperando a aula começar; enquanto isso escrevo.

Voltando… eu reparei em tudo naquele dia, desde o papo das pessoas na fila, aos detalhes das marcas no palco. Eu não queria perder nada. Por exemplo, por mais que o evento tenha sido gratuito, eu senti uma falta do “povão”. Daí me lembrei de um estudo acadêmico sobre a importância da arquitetura do Palácio das Artes em BH e como essa própria arquitetura afasta mais o povo do que atrai. Na pesquisa as pessoas entrevistadas disseram que não entravam  no Palácio das Artes porque não tinham dinheiro para pagar pelos eventos, sem saber que muitos deles são gratuitos ou a preços populares.

Me impressionei muito com a tranquilidade da Bete diante daquela gente fria e ávida por uma ação. Se fosse eu, teria saído correndo bem antes das cortinas abrirem. Depois o que me impressionou foi a facilidade e o domínio com as falas, algo que sempre me remete à Anna Magnani (e não sei porque) talvez porque ela amava o teatro tão e intensamente, que se preocupava em dizer as falas com precisão quase religiosa em respeito aos escritores. [Pelo menos foi isso que li sobre ela].

A insegurança de Otávio/personagem diante da necessidade de entrar no palco é bem cômica, mas me soou mais sentimental. Aquele palco poderia ser reinterpretado de muitas outras  formas, como quando encaramos os desafios da vida: o primeiro parto de uma mulher, a apresentação de um TCC, a primeira viagem sozinha, a visita a casa dos pais do namorado, o adeus a virgindade.Do melhor que senti do personagem foi seu medo e sua vergonha, medo do insucesso, da derrota, do tombo. vergonha da voz, do próprio corpo, da falta de experiência.

A história dele é um encorajamento para que não tenhamos medo de encarar um mundo novo e desconhecido. Um lembrança das nossas condições, de que estamos sempre muito perto do fracasso e da imperfeição e que tentar já é de certa forma uma vitória.

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PAUSA

19:34h  – A aula começou há alguns minutos e quase caí da cadeira quando o professor falou que o tema seria: QUEDA LIVRE. Estamos estudando a pós-modernidade e alguns conceitos bem complexos como o estruturalismo, o pós estruturalismo e a reconstrução. É muita coincidência (e acreditem em mim, juro que isso tá rolando agora!) O subtítulo da aula é: “Um grão de areia no maremoto”. Agora ele menciona um texto obrigatório que relaciona a pós modernidade com a montanha russa, uma alegoria. Estou anotando tudo o que ele diz por que ainda estou incrédula sobre como esta aula está tão ligada ao que acabei de escrever sobre a peça. “Perdemos os sentidos, beijamos o céu. Insegurança na subida e quanto mais alto, maior a queda. Começamos a perder os sentidos e as certezas, depois vamos para o looping: você vira de ponta cabeça e sofre um descentramento, não sabe qual é o próximo passo, Pânico, Caos. É o fim, é o nada”

As lágrimas do comediante, disse um dia Diderot, escorrem de seu cérebro; as do homem sensível jorram de seu coração.