Bon appetit

POST EM CONSTRUÇÃO

A vontade de falar sobre a temática desses filmes não é nova. Desde o início do Blog fiquei me perguntando como abordar um assunto tão complexo e ao mesmo tempo, tão curioso. Quem me conhece sabe da paixão que tenho pelo filme dirigido em 1989 por Peter Greenaway: O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante.  Com o tempo conheci outros filmes que abordam (também de forma surpreendente) uma função natural e cotidiana do ser humano: COMER.

Como este texto é apenas uma singela análise (mas contém imagens, vídeos e spoilers), recomendo que não leia se tiver curiosidade de assisti-los. Nesta publicação vamos falar de: Titus, Estômago e O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Não se engane com os títulos, a história de cada um deles é muito interessante e todos os três valem a pena serem vistos (e revistos).

O que esses filmes tem em comum?  Pois eu respondo agora: Canibalismo. Não há nada de novo quando se trata do ato “comer”, muito menos de “comer gente”.  Os astecas sacrificavam e comiam os guerreiros prisioneiros de guerra de outras tribos. No Brasil, índios Pacura da Amazônia engordavam seus companheiros para depois comê-los. Casos como o Armin Meiwes ou Fritz Haarmann chocaram o mundo e estamparam os jornais. No cinema, não foi diferente.

Quando fui assistir O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante pensei que a minha melhor surpresa seria ver Helen Mirren numa versão sensual e despojada, mas o  filme vai muito além da atuação de Mirren: Greenaway tem um trabalho artístico tão forte, que consegue fazer com que os atores passem a fazer parte do cenário (e vice-versa).

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A história se passa no restaurante Le Hollandais, cujo dono Albert Spica (belissimamente interpretado por Michael Gambon) é um sangrento mafioso que adora comida francesa e janta todos os dias no mesmo lugar. Sua mulher, Georgina Spica possui um paladar mais afinado e sempre recebe pratos especiais feito pelo simpático chefe de cozinha Richard Borst. No mesmo restaurante, Giorgina conhece o bibliotecário Michael (Alan Howard): Os dois começam um fervoroso caso e são acobertados pelo chefe de cozinha.

Como um déspota, Albert escolhe os pratos conforme seus desejos, come enquanto conversa (ou grita), esparrama bebida pela roupa, bate na mulher, grita com os capangas e mata ali mesmo quem o desafia. Seu tom de raiva ilustra sua enorme ambição por poder. Aliás, todos os capangas que estão ali, sentados a mesa entorno de Albert ilustram muito bem a junção de medo e ambição: estão naquele restaurante celebrando o interesse e a insegurança.

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O assombroso delírio proposto pelo filme é a junção de situações chocantes: Logo no começo, há uma cena escatologica: vemos um homem nu entre cachorros. Sua feição é de evidente tortura. Albert o obriga a comer o cocô dos animais e depois o abandona ali, sem nenhuma piedade. Em outro momento, Albert descobre o segredo da mulher e obriga uma criança (que era um informante dos amantes) a comer os botões da roupa até confessar onde Giorgina estava escondida.  Ele chega até o amante e o obriga a comer as páginas do seu livro preferido, até matá-lo sufocado.

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Se há algo magnífico, que me encanta nesse filme, é a arte com as cores. Com uma mistura lírica entre ópera, comida e pintura, os personagens (como disse antes) passam a fazer parte do cenário. Quando estão comendo, o ambiente é todo vermelho: inclusive a roupa dos personagens. A cor do banheiro é branca, a da cozinha é verde e a da biblioteca: marrom e dourado. E quando transitam entre os ambientes, as roupas também vão mudando de cor.  O diretor explicou a escolha:

A cozinha é verde porque representa a floresta de onde vem todo o alimento; o restaurante é vermelho por ser onde toda a violência ocorre; o banheiro, onde os amantes fazem amor pela primeira vez, é como o paraíso, e como tal ele tinha de ser branco; tem uma breve sequência no hospital que é iluminada com amarelo porque para mim é a cor das crianças, dos ovos, dos recém-nascidos; e finalmente a cor da biblioteca que é ouro, representando ‘a época dourada do aprendizado’, o idílico tempo em que tudo no Jardim do Éden era maravilhoso

O quadro “Banquete dos Oficiais da Companhia da Guarda de São Jorge”, do holandês Frans Hals (1580-1666), que fica pendurado na parede do restaurante é o sinal mais evidente do perfil (e ligação) artístico do diretor. Há também um garotinho (aquele que é obrigado a comer botões), que aparece em momentos do filme, cantando uma música lírica e trágica: simboliza o coro das tragédias gregas, que Greenaway explica brilhantemente: No mundo antigo, os romanos e os gregos sempre pensaram que a alma residia no abdômen; apenas os cristãos acreditavam que ela habitava o peito. As civilizações primitivas ensinaram que a barriga é o centro do corpo e sua própria gravidade, mas o cristianismo subverteu esse princípio ao considerar o coração como o âmago do homem”.

Pois então, chegamos ao momento mais aflamado da história. Georgina vive com o amante um sentimento que não tinha quando estava com Albert: sente-se livre, sem medo. Ao chegar à biblioteca e encontrar Michael morto, rodeado de livros e folhas de papel é tomada por uma ânsia desesperadora. Deita-se ali mesmo, junto ao corpo do amante e chora sua infelicidade de não conseguir protegê-lo.  Com muito custo, convence o chefe de cozinha a preparar o seu prato mais inusitado: o corpo de Michael.

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Como um ritual de despedida, entra com o corpo assado do amante e obriga o marido a comê-lo. Ironiza que não seria nenhum sacrifício, já que o próprio Albert prometera que mataria e comeria o homem que se atrevesse a dormir com Georgina. Esse momento é indescritível, há uma riqueza de detalhes tamanha: desde a música às roupas. A inversão de papeis ocorre justamente aí: Agora quem tem medo é Albert, é ele que se sente inseguro e incrédulo

– Jesus!

– Não é Jesus, Albert é o Michael… Meu amante!

Georgina obriga o marido a começar pelo pênis do amante.

-“Bon appetit, Albert.That’s French”  (bom apetite, é francês).

Final III[5]