Rever Almodóvar é uma necessidade, um brinde a milhares de homens e mulheres que existem dentro da gente, mas que ficam adormecidos. Em suas cores, em seus diálogos, em seus planos e enquadramentos, o diretor brinca com a tragédia humana, nos cerca de questionamentos sobre assuntos existenciais: amor, morte, sexo, dinheiro, medo, solidão, loucura. EXAGERO. É inegável, Almodóvar tem sua marca, domina o que faz e o faz muito bem.
Assisti um de seus filmes outro dia; decidi rever um que fosse estrelado por Marisa Paredes. Também estava com saudade dela, daquela voz charmosa e irresistível. Fiquei na dúvida, muitas opções. Maus Hábitos? Tudo Sobre Minha mãe? A pele em que Habito? De salto alto? Não… A Flor do meu segredo!
“A flor do meu segredo” é um daqueles filmes que deixam o coração apertado, que causa catarse já nos primeiros instantes. Na história, Leo Macias (Marisa Paredes) é uma escritora famosa que enfrenta uma crise criativa. A ausência do seu esposo, Paco – que é militar, a deixa depressiva e melancólica. Leo, é uma mulher sedenta por amor.
Ao mesmo tempo em que a editora a pressiona a produzir outro romance, ela se afoga em bebidas e apresenta um comportamento suicida. Um detalhe interessante é que Leo não assina as obras em seu nome, ela usa o heterônimo: Amanda Gris. Nas pequenas subtramas: a empregada da casa enfrenta um impasse, ou continua trabalhando com Leo, ou se dedica a companhia de dança. A mãe e a irmã da personagem principal vivem em guerra. Um editor do jornal El País aceita Leo como colunista do jornal e sua melhor amiga estuda estuda a melhor forma de noticiar a morte.
Indefenso frente al acecho de la locura
Assisti uma entrevista onde a Marisa Paredes resume perfeitamente sua personagem, ela afirma que Leo é uma mulher que não está disposta a seguir se enganando, que ela tenta de todas as formas – desde o fundo de sua alma, a recuperar um amor que já morreu. Em suma, essa é a essência do longa, a dor provocada por uma busca inútil. Leo entra em uma guerra que já está perdida.
Não acho que essa perspectiva sobre o “perder” se limite só ao amor. Somos, todos nós, perdedores em alguma coisa- e é difícil reconhecer isso. Pode parecer pessimismo, mas não é. Ninguém pode vencer em tudo, essa é uma condição humana. No caso do filme, Leo chegou “a beira da loucura”, isso porque não sabe viver sem amor e para ela, Paco significa amor.
Difícil conversar tecnicamente sobre o trabalho do Almodóvar, isso porque ele é único – desculpe se eu repeti essa expressão várias vezes, HAHA, mas é bem isso. Em “A flor do meu segredo” o diretor está mais trágico, mais lento e muito mais romântico -diferente das comédias exageradas que fez anteriormente.
Se existe uma cena que me encanta no longa se passa no momento em que Leo, depois de tentar o suicídio, vai para o centro da cidade e se depara com a greve feita pelos estudantes de medicina. Ela caminha entre milhares de pessoas vestidas de branco, que entoam uma canção. Leo veste vermelho, está de óculos escuros e está visivelmente abalada. A cena me remete logo a uma canção do Legião Urbana: “É solitário andar por entre a gente”.
É incrível como Almodóvar sabe usar metáforas, ele tem uma delicadeza ímpar e consegue encaixá-las perfeitamente na trama. Nas cenas iniciais, por exemplo, Leo aparece sentada em seu escritório, escrevendo mais um de seus romances e usando uma bota que o marido lhe dera de presente. As botas doem e estão tão apertadas que ela não consegue tirar. Tal qual acontece em seu casamento, há um amor absurdo, insuportável, tão grande e tão forte, que a sufoca.
Hoje calcei as botas
que me ofereceu há dois anos.
Lembra que teve de me tirar
porque, sozinha, eu não conseguia?Ao vê-las, esta manhã, me lembrei
de você e calcei-as em sua homenagem.
Estão apertadas.
Por vezes, lembranças de você,
como estas botas
apertam-me o coração
e mal posso respirar…
Não consigo descalçá-las