“Os perigosos” é um daqueles livros que se guarda para sempre, o encontrei perdido em uma das estantes da Leitura e o trouxe junto na mala na minha mudança para São Paulo. Li fazendo inúmeras anotações, tentando ficar atenta a tudo. Marcelo Secron Bessa tem um texto dinâmico, delicioso e muito esclarecedor. Foram 379 páginas de muito aprendizado. O livro realiza uma análise sobre as produções literárias com temáticas relacionadas à AIDS e dá uma ênfase nas autobiografias. Mais do que isso, oferece uma oportunidade de compreender como a imprensa reagiu em relação a doença e como reforçou alguns estigmas (tinham uma narrativa baseada em medo e preconceito, mas ao mesmo tempo, alertavam e informavam os leitores).
Este é um tema que me interessa muitíssimo, por vários motivos. Me impressiona como a minha geração desconhece a história relacionada à doença e por vezes, acredita estar imune a ela. Como eu disse, este livro me ensinou muito e me fez ter conhecimento sobre histórias e fatos que não imaginava. Nos primeiros capítulos, o autor conta que a epidemia foi tratada como um “câncer gay” e que muitos acreditavam que ela não chegaria ao Brasil. Na época, a imprensa direcionava matérias sobre a AIDS para as seções de saúde.
Uma das grandes discussões, que prevaleceu por muito tempo, é a de como encarar o doente. Eram vítimas ou culpados¿ Existia ali uma inocência ou uma vilania? Como a doença foi diretamente ligada aos homossexuais, existia todo um discurso moralista que os tinha como pervertidos. Os médicos e os enfermeiros, por outro lado, eram tratados como heróis. Na metáfora militar, eles encarnavam os soldados na linha de frente de combate. Ao longo dos anos foram surgindo narrativas literárias e matérias com tom romanesco. Um exemplo interessante é o de um jornalista que se passou por médico para acompanhar o dia a dia de um hospital que tratava desses pacientes.
O autor dialoga com muitos outros autores que realizaram um trabalho literário sobre a AIDS, como Susan Sontag, Michel Foucault, Jean-Claude Bernardet, e Valéria Polizzi. Também entre eles está Hebert Daniel. Sobre Herbert, o autor afirma: se Cazuza foi a cara da doença, Hebert Daniel foi a voz. Sobre Hebert há um apontamento interessante, ele não gostava do termo “aidético” dizia: “Não sou aidético, estou com AIDS”. Sobre isso, reescrevo uma citação que marquei no meu livro:
“Nas reportagens jornalísticas anteriores, a pessoa com AIDS é chamada de vítima, doente, condenada e similares. Usualmente, ao serem interpelados sobre o porquê do uso de aidético em detrimento de termos menos tendenciosos, os jornalistas esclareciam que seria imposição dos editores para ocupar menos espaço. Decerto que isso faz sentido, já que, geralmente, os textos jornalísticos têm espaços contadíssimos e, por isso, devem prezar pela síntese. Mas, hoje, relendo uma fotocópia daquela edição do jornal, penso que além da intenção (e necessidade) de ocupar menos espaço nos textos, parece também que sua criação pelo tal “ABC da AIDS”, naquele momento e naquele contexto, visavam dar um tom, digamos, mais científico e, portanto, neutro do que parece indicar a justaposição desse termo com outros mais médicos e técnicos”.
O capítulo que mais gostei, que está todo marcado e cheio de post its, fala sobre Caio Fernando Abreu (um dos meus autores favoritos). Caio foi um homem extremamente sensível e marcado como um “escritor pesado e de baixo astral”. Por volta de 1994, quando se descobriu soropositivo, ele se tornou uma “celebridade”, o que de certa forma lhe causou certo incômodo: “Sinto que houve, primeiro, quando me declarei soropositivo, um espanto, depois um movimento meio de solidariedade, misturado de piedade e escândalo. E acho que Ovelhas negras não recebeu atenção da crítica. Ganhou muita nota, teve muita entrevista e aí os caras só queriam saber sobre AIDS, era um absurdo. Depois (de aparecer no programa) do Jô Soares, parei. Porque o meu trabalho literário continua. O resto da crítica falava sobre um escritor com AIDS e tal, inclusive nas críticas da reedição de Morangos Mofados. O texto não foi levado em consideração”.
Durante a doença, Caio busca inspiração em Frida Kahlo e se identifica com a dolorosa vida da pintora que, depois de um acidente, passou por sérias intervenções cirúrgicas e sentiu muitas dores. “Tenho lido muito. Sofri e chorei com O diário de Frida Kahlo que me dá muita força: se ela suportou tanta, tanta dor, porque eu não suportaria também?”
Glória Polk (Regina Duarte) é uma escritora decadente, que depois de 17 anos decide voltar a escrever. Assim convida uma jovem jornalista, a Carol (Bárbara Paz) à sua casa, no intuito de ceder uma entrevista sobre sua obra. Nesse jogo de interesses, que beneficia tanto à escritora quanto a jornalista, o encontro vai tomando proporções perigosas (e bizarras) já que Glória, extremamente temperamental, decide se vingar de Carol por causa de um ‘segredo’ que as une há anos.
O filme, que é uma joia, é o primeiro trabalho no cinema do jovem diretor Rafael Primot e está repleto de diálogos marcantes, de uma profunda reflexão sobre loucura e sanidade, de cenas lindíssimas e referências ao melhor do cinema clássico. (Também, acho que vale comentar o fato de que feito com um orçamento curtíssimo, de apenas R$ 150mil…).
Ver Regina Duarte interpretando com brilhantismo uma personagem inspirada em Norma Desmond e Baby Jane me fez pensar no quanto a mídia e o público podem ser cruéis com figuras públicas, expostas a dura e implacável crítica em relação a velhice. Envelhecer não é para mocinhas, Bette Davis já dizia isso… pressentindo um futuro não muito agradável em que foi considerada veneno de bilheteria.
Ver Regina Duarte dando vida a uma feminista lésbica, que cita Susan Sontag, Simone de Beauvoir, Mark Twain… que prega o amor livre e com sarcasmo e agressividade ironiza a juventude (a qual apelida de ‘bundinha rosada’), faz com que eu me sinta parte desse público cruel e ingrato, que não reconhece uma carreira incrível e que também não valoriza seus artistas. Eu ri daquele vídeo em que Regina aparece sambando. Eu ri das fotos do aeroporto. Agora, depois de “Gata Velha ainda mia” me arrependo amargamente.
Regina não deixa a peteca cair, encara o melhor e o pior de si, sem medo de se expor. Sem medo de aparecer sem maquiagem na tela grande, sem medo de não ‘estar bonita’. É o espírito pulsante do verdadeiro artista, aquele que doa não só a sua imagem, mas o seu corpo (e até a sua alma) quando está interpretando. Menções também honrosas à Barbara Paz, que mesmo ofuscada por Regina, responde à altura e se entrega, também se expõe.
Enfim…
Felizes são aqueles que conseguem envelhecer bem… Não me refiro apenas ao aspecto físico, refiro-me à dignidade (que hoje, acredito ser um dos bens mais preciosos do ser humano). Tenho pensado muito sobre a velhice, principalmente depois que assisti esse filme… reli uma passagem do livro da Rosa Montero que resume muito bem o que eu penso: “Há pessoas que com o transcorrer da vida simplesmente envelhecem, outras, mais sábias ou afortunadas, vão amadurecendo. Outras, ao contrário apodrecem e outras ainda, enfim, se desbaratam, e todos esses processos têm frequentemente um claro reflexo no aspecto físico”….
Gata Velha ainda Mia é um grande filme, daqueles que nos faz acreditar e gostar do cinema nacional. Vale a pena ser visto e revisto.
Ron Woodroof (interpretado por Matthew McConaughey) é um texano heterossexual, conservador e homofóbico que, após um acidente no trabalho, é internado em um hospital e descobre ter AIDS. O filme, dirigido por Jean-Marc Vallée, acompanha Woodroof durante os processos da doença e mostra como ele travou uma batalha contra a indústria farmacêutica, ajudando milhares de pessoas soropositivas em seus tratamentos. A trama, que se passa na década de 1980 e é baseada em fatos reais, também conta com Jared Leto e Jennifer Garner.
MCCONAUGHEY, O CLUBE … E O OSCAR
Quem vê Matthew McConaughey agora, talvez não se lembre da época em que o ator protagonizava comédias românticas ou filmes de ação com diálogos babacas e superficiais (nem todos, eu sei!). McConaughey está definitivamente mais maduro e, de certa forma, carrega consigo o filme. Jared Letto também está incrível (aliás, ele é incrível), mas o seu personagem não é tão bom quanto o de McConaughey, não mesmo. (Pode parecer que eu estou menosprezando o Letto, não é isso, acontece que ele possui desempenhos muito melhores do que esse.)
A gente sabe que a academia adora transformações físicas, o público se impressiona quando os atores emagrecem muito ou engordam demais para o papel, não é atoa. As transformações físicas demonstram o comprometimento, a dedicação e as dificuldades impostas pela produção.
Mas, ligar o filme apenas a esse aspecto é uma injustiça. “Clube de Compras Dallas” possui uma história densa e interessante, uma estética ambígua e diálogos bem construidos. A ambientação é de deixar o queixo caído, principalmente quando se dá conta de que o filme contou com um orçamento de 5 milhões de dólares… pode parecer muito, mas não é – esse orçamento é de um filme pequeno. Talvez por isso, apresente uma estética tão documental.
Em relação aos personagens, o destaque mais uma vez vai para McConaughey, afinal, Ron Woodroof é um homem desprezível que vai se redimindo ao longo da trama. Não dá para questionar a sua indicação de melhor ator ao Oscar, aliás, meu coração está completamente dividido entre ele e Leonardo DiCaprio (que concorre por O Lobo de Wall Street).AINDA SOBRE A AIDS…
Clube de Compras Dallas é um filme sensacional, depois de assisti-lo fiquei com uma vontade imensa de reler “Doença como metáfora”, escrito por Susan Sontag em 1988. Já na segunda parte do livro (dedicado à AIDS), Sontag afirma que o HIV banalizou o câncer. Contextualizando essa afirmação (com a doença explodindo exatamente nesse período), o que Sontag diz parece bastante plausível. Ela ainda afirma o seguinte: “Ao contrário do câncer, entendido como uma doença provocada pelos hábitos do indivíduo (e que revela algo a respeito dele), a AIDS é concebida de maneira pré-moderna como uma doença provocada pelo indivíduo enquanto tal e enquanto membro de algum “grupo de risco” – essa categoria burocrática, aparentemente neutra, que também ressuscita a ideia de uma comunidade poluída para a qual doença representa uma condenação”.
Incrível como essa reflexão está bem representada no filme e, como a sociedade parece mergulhada e engessada em seus próprios preconceitos – ainda hoje, é claro. Uma das denominações mais estupidamente criadas e usadas por um longo período foi chamar a AIDS de “câncer gay”, ligá-la apenas a homossexuais, bissexuais ou prostitutas. A gente sabe que qualquer heterossexual que transa sem proteção está igualmente exposto a contaminação. Lembro-me bem de uma campanha publicitária governamental que incentivava homens e mulheres acima dos 60 anos (casados ou não) a usarem camisinhas. Uma quantidade absurda de idosos foi diagnosticada com a doença (não sei como estão os dados atuais) e não se davam conta disso, acabam recebendo o tratamento tardio.
E o “Clube de Compras Dallas” toca na ferida, sabe exatamente onde ir. Além portar uma doença terrível, essa pessoas precisam conviver com o pré-conceito, que já é em sí, uma coisa absurdamente cruel. Por isso a grandiosidade do filme, não só por apresentar boas atuações, mas por trazer um retrato sincero sobre o HIV, de colocar o assunto mais uma vez em pauta. Relembrando Susan Sontag mais uma vez, há uma passagem no livro em que ela diz “A idéia da doença como castigo é a mais antiga explicação para a causa das doenças”.
Em A Imagem Virtual Mental e Instrumental, Paul Virilio analisa os efeitos da “videônica” em que a câmera está subordinada ao computador. A imagem percebida pela câmera, ao invés de ser enviada a um telespectador, é enviada a um computador para ser analisada. A interpretação e a capacidade de análise humana se subordinam a robótica. O autor afirma que a imagem mental, aquela elaborada a partir de conhecimentos individuais, com base em análises e opiniões pessoais está desaparecendo. Essa imagem deu lugar a uma imagem instrumental.
Imagem do Documentário “Câmera-olho”, o projeto cinematográfico mais ambicioso do diretor Dziga Vertov
O desenvolvimento das imagens virtuais, como explica Virilio, está diretamente ligada ao desenvolvimento audiovisual. A industrialização da visão (e o surgimento de novas tecnologias) molda e influencia comportamentos sociais. Temos como exemplo, as câmeras de controle de vigilância. Através de instrumentos cada vez mais modernos de reprodução de imagens, o ser humano está tendo acesso mais fácil e rápido às imagens produzidas tecnologicamente e com conceitos pré-definidos. Dessa forma, graças a essa facilidade de acesso, os homens tem sido induzidos a trocar a análise mental das imagens pela simples aceitação da mensagem que lhe é transmitida, sem questionamentos.
“Agora os objetos me percebem”, a citação de Paul Klee se refere às câmeras de vídeos instaladas em praticamente todos os lugares comuns acompanhando e vigiando as pessoas, através de uma visão artificial. Com inteligência artificial a máquina tem a capacidade de reter e reproduzir imagens, além de transmitir sensações que estamos sendo observados. A memória visual mental seria uma realidade subjetiva ou objetiva da própria visão cerebral, o sujeito. Já a instrumental precisa de um suporte, uma extensão dos olhos para captar a imagem, ou seja, a máquina, o objeto.
Antes a percepção da imagem era apenas com os olhos, e elas não podiam ser reproduzidas ou projetadas, como acontece agora com o cinema e a fotografia. A digitalização trouxe para a fotografia a efemeridade. Com uma câmera é possível registrar fotos instantâneas, visualizá-las na tela, gerar grande quantidade de imagens e enviá-las a outras pessoas que se encontram em lugares distintos. Neste caso, o autor explica que este desenvolvimento tecnológico também se caracteriza por uma superficialidade.
O texto aborda o paradoxo da representação do espaço real, a virtualidade e a realidade dos fatos andando praticamente juntos, ou seja, as notícia quase ao mesmo tempo que a realidade. Outra ressalta do autor, é que as máquinas de produção de imagens estão cada vez mais em transformação, ficando obsoletos rapidamente e dando lugar a outros tipos de concepção de imagem.
A industrialização da visão induziu os indivíduos a uma interpretação automática do sentido dos acontecimentos; das imagens que representam esses acontecimentos. Dessa forma, as imagens virtuais instrumentais foram, cada vez mais, substituindo as imagens virtuais mentais, ocasionando que a sociedade se tornasse escrava da imagem.
Essa questão também é abordada no filme que vimos em sala de aula, Ensaio sobre a cegueira. O filme também mostra essa sociedade que é escrava da imagem e que recebe diariamente uma overdose de informações pré-estabelecidas a partir dessas imagens. A cegueira é provocada devido a esse excesso e também devido à incapacidade gerada nessa sociedade de se selecionar e analisar as imagens com base em conceitos pessoais. A sociedade não só se tornou refém da imagem como também se tornou incapaz de formar opiniões diferentes daquelas que são fortemente induzidas por elas, a sociedade perde o senso crítico.
Essa perda do senso crítico que deixa as pessoas vivendo num mundo de representações é relatada também por Susan Sontag, no texto Na caverna de Platão. Em seu texto, Susan resgata as sombras da alegoria da caverna de Platão para dizer que a banalização da imagem fez com que os indivíduos retornassem a viver em uma caverna. A banalização referida é também causada por esse fácil acesso às imagens que as deixou destituídas de sentido. Ao passo que, por outro lado, as imagens se tornaram tão presentes na vida dos indivíduos que passou a ser confundida com a realidade. Assim, as imagens, que são uma mera representação da realidade, construíram uma sociedade distorcida da real, onde os seres humanos se tornaram cegos e não questionam aquilo que vêem, bem como na caverna descrita por Platão.
A conclusão que se tira é que, a tecnologia trouxe também fatores negativos. O excesso, o imediatismo e esse automatismo banalizaram a imagem e fizeram com que a sociedade passasse a se basear apenas nessas imagens para a construção de sentidos. Sem senso crítico, sem questionamento sobre as mensagens transmitidas, o que caracteriza tanto a cegueira quanto esse retorno à caverna. Ora o indivíduo se vê sem rumo caso afastado das imagens, ora se vê conformado com qualquer sentido que elas vieram impor.
“Doença como metáfora” foi escrito por Susan Sontag em 1978 e é uma obra que continua atual e relevante. Já no prefácio, Sontag cria uma metáfora onde afirma que todas as pessoas possuem dupla cidadania: uma no reino dos sãos e outra no reino dos doentes. “Apesar de preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde, ficamos como cidadãos desse outro lugar”. Sua análise não é sobre a doença física em sí e sim sobre os estereótipos construídos sobre ela. A autora evidencia o câncer e a tuberculose, classificados como “duas doenças tolhidas pelos ornamentos da metáfora”. O livro, reconhecido como um clássico contemporâneo é também uma investigação sobre a política conservadora e sobre o potencial simbólico da discriminação.
Susan Sontag por Annie Leibovitz, a autora foi diagnosticada com câncer no seio em 1977
(1) No século XIX, a tuberculose era considerada intratável, portanto receber esse diagnóstico era quase uma sentença de morte. Para Sontag, o câncer ocupou essa vaga de enfermidade implacável que entra sem pedir licença e invade secretamente o corpo do doente. A perplexidade sobre a doença é tão grande que é comum o pavor de quem a observa. Muitos doentes perceberam um distanciamento dos amigos e familiares que de forma inevitável, possuem a sensação de transgressão ou que a autora chama de violação de tabu. Os próprios nomes das doenças carregam consigo certo peso (há quem evite falar a palavra câncer, como muitos antigamente evitavam falar tuberculose).
Como os nomes já são rotulados pejorativamente, as pessoas diagnosticadas com a doença se sentem desmoralizadas e condenadas. É comum esconderem a doença que pode por em risco a vida amorosa ou mesmo o emprego. Já no primeiro capítulo, Sontag questiona a atitude de médicos que comunicam o diagnostico de câncer a família e não ao paciente: “a probabilidade de uma pessoa que sofreu um infarto coronário vir a morrer de outro infarto no intervalo de alguns anos é, no mínimo, a mesma de uma pessoa com câncer vir a morrer de câncer em breve. Mas ninguém pensa em esconder a verdade de um paciente cardíaco: nada existe de vergonhoso num ataque do coração. Mentem para os pacientes de câncer não só porque a enfermidade é (ou se supõe ser) uma sentença de morte, mas porque é considerado algo obsceno”.
(2) As metáforas sobre o câncer e sobre a tuberculose se entrecruzam e se distanciam ao longo da história. Sontag cita que Galeano chegou a comparar o câncer como um caranguejo: não porque é uma doença que rasteja e sim por causa da sua protuberância. Etimologicamente, a tuberculose foi vista como um inchaço, os médicos diziam que o tubérculo tinha um tumor – portanto, desde a antiguidade tardia até uma época bem recente, a tuberculose era tipologicamente um câncer. A autora explica que a tuberculose e o câncer só foram definitivamente separadas em 1882, quando se descobriu que a tuberculose era uma infecção bacteriana.
Muitas vezes, a tuberculose é vista como uma doença que atinge apenas um órgão: os pulmões. Ela também é vista como uma enfermidade de contrastes extremos: palidez branca e rubor vermelho. Por muito tempo acreditou-se que a tuberculose é capaz de gerar períodos de euforia e apetite sexual intenso (e que esse surto de vitalidade é apenas enganoso). Acreditava-se que o paciente com tuberculose poderia se curar se mudasse de ambiente. A tuberculose é uma doença da privação: das roupas escassas, de corpos escassos e quartos sem aquecimento. O tubérculo moribundo é alguém que se tornou mais belo e elevado. Em contrapartida, o câncer é entendido como uma doença que pode surgir em qualquer órgão, a palidez do paciente de câncer é imutável. Ele é visto como dessexualizador. Enquanto o moribundo tuberculoso é belo, o do câncer é atrofiado. O câncer é traiçoeiro e mais cedo ou mais tarde, será terminal. O câncer é uma doença da classe média, ligada à fartura, ao excesso. O tuberculoso possui estímulo de apetite, o paciente com câncer, não consegue comer.
Os aspectos citados acima são contrastes colhidos na mitologia popular. Sontag explica que muitos pacientes com tuberculose morreram sentindo muita dor, enquanto pessoas com câncer sentiram pouca ou nenhuma dor. A tuberculose não é apenas pulmonar. Ela também critica o que chama de “equação de Groddeck”: câncer=morte. “O câncer é um tema raro e ainda escandaloso para a poesia, e parece inimaginável estetizar a doença”.
Susan Sontag faleceu em 28 de dezembro de 2004 aos 71 anos. A autora sofreu com complicações de síndrome mielodisplásica, que evoluiram para leucemia mielóide aguda.
(3) Para Sontag, a tuberculose e o câncer estão ligados a paixão. No entanto, enquanto a tuberculose foi vista como uma doença dos românticos e apaixonados, o câncer é efetivamente caracterizado por sua ausência (os pacientes são encarados como sexualmente reprimidos, incapazes de expressar ira). Muitos acreditam que ambas são uma sequela da frustração: o amor dos tuberculosos (mitologicamente encarados como pessoas explosivas ou sentimentais) são barrados enquanto o amor (e outros sentimentos) das pessoas com câncer são constantemente reprimidos (Sontag cita o caso de Norman Mailer que afirmou que se não tivesse assassinado a esposa, teria ficado com câncer). A resignação é a causa da enfermidade.
Ainda em referência às metáforas da tuberculose, Sontag afirma que era característica das vitimas natas e também era capaz de tornar sexy a pessoa doente. “Era tanto um modo de representar a sensualidade e fomentar as demandas da paixão como um modo de representar a repressão e divulgar as demandas da sublimação, e a doença suscitava tanto um torpor do espírito”.
(4) Sontag afirma que o tuberculoso já havia adquirido conotação romântica no século XVIII. A literatura veio para fortalecer essa ideia e apresentar o tuberculoso como alguém delicado e sensível. A doença passou a estar relacionada com uma pessoa com aspecto atrativo. Na época, era sofisticado parecer enfermo (magro e pálido). A moda entre os homens e mulheres era o vulnerável e o raquítico. A tuberculose estava ligada a noção de melancolia e elegância. Além disso, a junção entre morbidez, beleza e tristeza conotava criatividade. O mito da tuberculose tornou-se um clichê. Ao mesmo tempo, o tuberculoso era considerado um marginal e a doença passou a ser motivo de viagens (viajar ou isolar-se, até então, não eram vistas como forma de tratamento). Sontag afirma que os românticos inventavam a invalidez como pretexto para o ócio e par a isenção das obrigações burguesas afim de viver apenas para a arte. A tuberculose também era associada a loucura e só então os doentes passaram a serem enviados aos sanatórios. A autora revela algo muito interessante, ela diz que a metáfora da viagem psíquica é um prolongamento da ideia romântica: “Não por acaso a metáfora mais comum para uma experiência psicologica radical vista de maneira positiva – produzida por drogas ou por psicose – é a de uma viagem.”
(5) Ao contrário das grandes epidemias (como a peste bubônica, tifo e a cólera) a tuberculose era encarada como uma doença isolada, como uma doença do indivíduo: Ninguém pergunta “Por que eu?” quando contrai cólera ou tifo. Mas “Por que eu?” (com sentido de “isso não é justo”) é a pergunta que muitos se fazem quando sabem que estão com câncer”. Apesar da sua incidência, contrair tuberculose era algo misterioso ( o mistério que rondava a tuberculose, por exemplo, não ocorria com a sífilis. Apesar de terrível, sabia-se que a sífilis poderia ser contraída através do sexo) O julgamento não era só moral, mas também psicológico. Queimava-se as roupas do tuberculoso assim como queimavam de quem tinha cólera. Outro temor proveniente da tuberculose (e que de alguma forma, está presente no câncer) é de que ele esteja ligado a genética.
A mente de uma pessoa trai o corpo ou o corpo da pessoa trai os sentimentos. Sontag explica que no mundo antigo, as doenças eram vistas como ira divina. Hoje são formas de autojulgamento ou autotraição. Em situações extremas a doença é responsável por trazer a tona o que há de melhor e o que há de pior nas pessoas. Na antiguidade, a doença epidêmica era um castigo para a comunidade, hoje é um castigo para o indivíduo. [na literatura] “Para os personagens tratados de maneira menos sentimental, a doença é vista como uma oportunidade para finalmente agir bem”.
(6)Para os gregos a doença poderia ser gratuita ou merecida, com o advento do cristianismo, moralizou-se a percepção sobre as doenças que passaram a serem vistas como punição (como um castigo justo e adequado). “No século XIV, a ideia de que a doença condiz com o caráter do paciente, assim como o castigo condiz com o pecador, foi substituída pela ideia de que ela expressa o caráter”. Sontag cita o médico Bichat que dizia que a saúde é o silêncio dos órgãos e a doença, sua revolta, portanto: a doença é a linguagem dramática do corpo. Nos séculos passados a doença foi vista como um sentimento exacerbado, a tuberculose foi logo ligada ao desejo, os primeiros românticos eram caracterizados como pessoas que desejam com mais intensidade do que as outras.
Para Sontag a ideia punitiva sobre as doenças contemporâneas (antes com a tuberculose, hoje com o câncer) ampliou-se. Antes a doença expressava o caráter, hoje o caráter causa a doença. Ela evidencia o absurdo e o perigo dessa percepção que coloca o ônus da doença no paciente (acreditava-se que a cura depende, sobretudo da capacidade de auto-estima do paciente, uma capacidade já debilitada). Tanto o mito que ronda o câncer quanto o que rondou a tuberculose sugerem que a pessoa é responsável por sua própria doença. Na visão de Sontag, o caso do câncer é pior já que o câncer é visto como sinônimo de fracasso.
Depois de tanto tempo consegui encontrar em um dos sebos de BH o livro “Diante da dor dos Outros” escrito por Susan Sontag em 2003. Sontag sempre me chamou atenção por abordar com sabedoria assuntos fundamentais da sociedade contemporânea através de um olhar crítico e abrangente. Nessa obra, a autora realiza uma reflexão sobre a representação da dor através das imagens e discute como elas podem contribuir para aumentar a discórdia, fomentar a violência ou mesmo para criar apatia. Além disso, analisa diversas imagens mundialmente famosas de distintas épocas (por exemplo: refere-se tanto a documentos fotográficos da Primeira e da Segunda Guerra quanto ao ataque de 11 de Setembro, a imagens da Palestina, Ruanda e Israel).
Com dinamicidade, Sontag inicia o livro dialogando com Virginia Woolf. Conta que em 1937, Woolf recebeu uma carta de um renomado advogado londrino que fez a seguinte pergunta: “Na sua opinião, como podemos evitar a guerra? Em resposta, Woolf contextualiza e sustenta uma retórica sobre as imagens da guerra que diariamente invadiam os jornais chamando atenção sobre o impacto da devastação. Sontag explica que quando Virgina Woolf utiliza a expressão “o que nós podemos fazer”, ela também posiciona o interlocutor diante as imagens chocantes. O “nós” refere-se não só aos que sentem repugnância ou empatia, mas também aos que por um motivo ou outro, decidem ignorar os horrores da guerra.
“A seleção desta manhã contém a foto do que talvez seja o corpo de um homem, ou de uma mulher; está tão mutilado que pensando bem, poderia ser o cadáver de um porco. Mas ali adiante estão, seguramente, crianças mortas e também, sem dúvida, um pedaço de uma casa. Uma bomba arrombou a parte lateral; há ainda uma gaiola de passarinho pendurada no que, pode-se presumir, foi a sala de estar. (…) O senhor as chama de “horror e repugnância” Nós também a chamamos de horror e repugnância. A guerra, diz o senhor, é uma abominação, uma barbaridade, é preciso por fim à guerra, a qualquer preço. E nós fazemos eco a suas palavras. A guerra é uma abominação, uma barbaridade, é preciso pôr fim à guerra” (Virgina Woolf).
Ainda sobre a perspectiva de Woolf, Sontag questiona ao leitor se as imagens provocam apenas repugnância. Ela nos pede para refletir sobre o poder e as intenções de quem fotografa e de quem expõe as imagens.Como afirma, certas fotos servem para atiçar o ódio, causar dó ou empatia, simbolizar superioridade ou inferioridade, pode ser entendido como um clamor por paz ou por vingança, pode representar heroísmo ou covardia.
Registro: “As imagens não são só registro, mas também funcionam como testemunho pessoal”
Quando escreve sobre a importância da fotografia como um registro, Sontag nos faz recordar que anos de experiência e aprendizado em fotografia não representam uma vantagem insuperável aos inexperientes. Ironicamente, fotos tremidas ou com má resolução/iluminação possuem uma legitimidade (ou autenticidade) semelhante a fotografias de profissionais. Como exemplo, cita que após o ataque de 11 de setembro, artistas realizaram uma mostra chamada “Aqui é Nova York. Os organizadores reuniram fotógrafos amadores e profissionais que resgistraram o ataque e colocaram as imagens sem o nome do autor a venda. A pessoa que comprava a foto poderia levar pra casa uma imagem feita por Gilles Peress, James Nachtwey ou uma foto de um completo desconhecido.
Fotojornalismo: A década de 1940 (em tempos de guerra) conferiu legitimidade aos fotojornalistas que arriscavam a pele para registrar os conflitos. A profissão conferia certo prestígio e influência. Como Sontag explica, as revistas preconizavam uma missão ampla e eticamente árdua para os fotógrafos que deviam fazer uma crônica desse tempo fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas.
Voyeurismo: “o horripilante nos convida a ser ou espectadores ou covardes, incapazes de olhar”. No terceiro capítulo do livro, há uma grande análise sobre a contemplação do sofrimento (ou tormento) alheio. “Parece que a fome de imagens que mostram corpos em sofrimento é quase tão sôfrega quanto o desejo de imagens que mostram corpos nus”. As imagens nos convidam a olhar, algumas quase nos desafiam: “você é capaz de observar imagem tão horripilante?”. Somos então, tomados por um prazer que mistura vergonha e satisfação e também de choque: “talvez as únicas pessoas com o direito de olhar as imagens de sofrimentos dessa ordem extrema sejam aquelas que poderiam ter feito algo para minorá-lo”.
Sontag questiona a fotografia, a contemplação e a realidade. Mas ‘Diante da dor dos outros’ é, sobretudo, um questionamento sobre a guerra e construção imagética que realizamos sobre ela. Pois a fotografia é também um documento histórico da humanidade e como documento, está presente na memória e no esquecimento coletivo (e individual). Para Susan Sontag podemos esquecer mais facilmente de um acontecimento se não temos imagens para lembrá-lo.
Através de um olhar crítico, a autora se posiciona contra as adulterações das fotos da guerra e contra aqueles que lucram com a imagem da dor alheia. Ela cita, por exemplo, o lugar impróprio em que várias fotos são veiculadas dentro de uma revista (de um lado uma propaganda de perfume e do outro, uma mãe e um filho mortos). Ainda nessa perspectiva, Sontag se refere a manipulação, de imagens.
Sontag cita o caso de Roger Fenton, o primeiro fotojornalista contratado para registrar imagens de guerra (no caso, a Guerra da Criméia). Nas fotos, Fenton criava a ilusão que os soldados viviam em boas condições e que aquele cenário horroroso, não era ‘tão horroroso assim’. Segundo a autora, essas adulterações se repetiram inúmeras vezes (como nos próprios ataques dos EUA ao Afeganistão, onde as TVs veiculavam que os civis não seria atingidos).
“Mas a imagem fotográfica, na medida em que constitui um vestígio (e não uma construção montada com vestígios fotográficos dispersos), não pode ser simplesmente um dispositivo de algo que não aconteceu.
É sempre a imagem que alguém escolheu; fotografar é enquadar e enquadrar é excluir”
Sontag, Susan, 1933 – Diante da dor dos outros / Susan Sontag: tradução Rubens Figueiredo – São Paulo. Companhia das Letras, 2003