Que bom te ver viva

“Lição de cadeia fica e muito mais fica a mancha que a cadeia deixa na vida do homem

Que bom te ver Viva, Irene RavacheAdoro esse título e adoro a concepção desse filme. “Que bom te ver viva” é um documentário brasileiro, dirigido por Lúcia Murat e lançado em 1989. Vinte e seis anos depois, os relatos contidos no filme continuam assustadores e atuais. De fato, “Lembrar é resistir”.  Sabemos que a ditadura e os seus “frutos” não podem e não devem ser esquecidos – nem pela nossa geração, nem pela geração futura.

Murat reuniu um grupo de mulheres militantes, que entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 foram presas e torturadas. Neste entrelaçar de histórias e vozes narrativas, aparece Irene Ravache que encarna vários personagens fictícios e dramatiza alguns acontecimentos. Mescla a ficção e a realidade, por exemplo, com a história da própria diretora. (Particularmente, não gostei muito da dramatização da Irene Ravache. Não dela, é claro. Mas acho que a parte fictícia ficou sem sintonia com os depoimentos, além disso, me pareceu agressivo demais).

A perspectiva feminina da ditadura é chocante e ao mesmo tempo interessante. Ver a força daquelas mulheres, todas visivelmente traumatizadas, é se dar conta de que ainda há muita obscuridade na história do Brasil a ser revelada. Essa bagagem violenta e essa memória dolorosa são algumas, das tantas bandeiras, a serem levantadas. A noção do corpo, da liberdade, dos valores familiares e da vida parecem que pulsam a cada história narrada.

Me impressiona a história daquela senhora que descobriu-se grávida quando presa e que deu a luz dentro da cadeia – e, posteriormente, teve a notícia de que seu companheiro havias ido assassinado. Imagine o terror, a sensação de desproteção, a humilhação. Fora os inúmeros relatos de abuso sexual, moral e psicológico. Outra história também me chama atenção, a da médica que se viu obrigada a delatar os amigos e depois, quando solta, sofreu sanções dos companheiros…

Holocausto Brasileiro

Holocausto Brasileiro é um livro fantástico, de importância histórica e de admirável trabalho jornalístico. Realizado por Daniela Arbex, o livro relembra a terrível história do Hospital Colônia, um hospício que funcionou durante décadas e fez mais de 60 mil vítimas (pacientes que foram violentados, torturados e privados de sua liberdade).

O Hospital Colônia foi fundado em 1903 em Barbacena, Minas Gerais. A instituição, que atendia diversos casos psiquiátricos em todo o estado serviu de palco para uma das mais assustadoras histórias que envolvem o serviço nacional de saúde pública. Comparado a um campo de concentração nazista, o “Colônia” existiu por mais de oitenta anos e foi mantido não só pelo estado como também pela igreja católica.

dica-leitura-caos-holocausto-brasileiro-banner-featuredOs pacientes chegavam em grandes vagões de carga conhecidos como “Trem Doido”, eram exibidos aos moradores que se reuniam para ver (e para  fazer chacota) dos doentes. Quando entravam na instituição, tinham seus cabelos raspados e eram despidos, muitos perdiam a identidade, a família e a dignidade. O processo de internação era absurdo, totalmente arbitrário. Uma mulher foi internada porque era triste demais, outra porque engravidara do patrão, um garoto foi internado porque era muito tímido…

O Colônia servia para “esconder” a escória da sociedade, as pessoas que a autora chama de “invisíveis”. E eram mesmo, não tinham nome, nem voz, eram excluídos porque não se adaptaram a sociedade. Muitos foram internados (ou presos) porque eram homossexuais e de acordo com a autora, cerca de 70% dos pacientes não tinham diagnostico de doença mental.  Crianças e adultos eram enclausurados nas mesmas celas, dormiam em camas sem colchão (usavam capim, repleto de urina e fezes), bebiam água de esgoto, comiam ratos e morcegos, sofriam lobotomia e levavam eletrochoques (por funcionários inexperientes), eram dopados, impedidos de  sair do hospital (quer dizer, só saiam mortos de lá).

ImagemEm princípio, pouco tempo antes de ler o livro e conhecer a história em sua complexidade, eu achava que o título “Holocausto Brasileiro” banalizava e não fazia jus ao termo.  Depois que li e reli a obra, não restaram dúvidas de que esse título é perfeito, tanto pelas barbaridades cometidas no Colônia quanto pelo número de vítimas.

É engraçado porque é justamente com essa percepção que Daniela Arbex inicia o prefácio, talvez adivinhando a reação dos leitores: “As palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas do sentido. Holocausto é uma palavra assim. Em geral soa como exagero quando aplicado a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Neste livro, porém, seu uso é preciso”  – Aliás, a comparação do hospital a um campo de concentração nazista não surgiu da escritora e sim do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que em 1979 visitou a instituição e se horrorizou com o que viu.

ImagemFiquei chocada quando terminei de ler, um pouco assustada em relação a capacidade humana de ser e fazer “mal” – mais do que isso, de se silenciar diante de uma situação como essa, afinal, onde estavam os governantes, os vizinhos e as famílias que tinha conhecimento do estado dessas ‘vítimas’ e não faziam nada?

Em 1979, quando o muro do Colônia começava a cair e o “horror” chamava a atenção da opinião pública, o diretor mineiro Helvécio Ratton entrou no hospício e documentou a situação. O documentário “Em nome da razão – Um filme sobre os porões da loucura” foi todo filmado em preto e branco, sem nenhum tipo de trilha sonora. Confira!

[Depois de ler o livro, a impressão que tive foi que a Daniela Arbex não impressiona muito como narradora, apesar da história extremamente chocante, há aspectos textuais que deixam a desejar. É evidente que seu trabalho jornalístico – como citei acima – foi bem feito e exaustivo, ela fez o que manda a cartilha: entrevistas, apuração (…) Mas também usou e abusou de um texto romantizado e deixou algumas lacunas.]