O que fizemos de nós?

 

Comecei a ler o segundo livro com menos entusiasmo do que pelo primeiro mas fui sendo cativada mais uma vez pela capacidade narrativa de Zuenir Ventura. O segundo livro “1968, O que fizemos de nós” só perdeu um pouco do meu interesse por causa de algumas entrevistas. O fato é que me surpreendi positivamente (mais uma vez), não há nada de pedante em nenhuma das afirmações, uma lição jornalística: a importância das entrevistas.

Gosto principalmente da primeira parte e de suas respectivas divisões, os ‘reflexos do baile distante, ‘a falta de bússola – enfim, são fantásticas. Esse balanço que o autor faz, mostra que melhoramos em muitas coisas e que ainda estamos em dívida com muitas outras. O que mais me agrada é pensar que a reflexão do autor sobre a “nova geração” ou a “geração dos netos de 68” é justamente sobre a minha geração. Me identifiquei em diversos relatos que ele realiza.

Zuenir Ventura começa o livro conversando com as mulheres que em apoio (e também influenciadas) pelos movimentos de 68, se separaram dos maridos e foram a luta (cada uma a sua forma). Hoje reconhecem que aquela época refletiu diretamente no comportamento das suas netas, nas suas formas de vestir e de conversar. A crítica maior sem dúvidas é sobre a internet, para elas, um processo de alienação.

De fato, o mundo digitalizado trouxe vantagens em relação a 68. A comunicação rápida, o número de informações cada vez maior… mas que transformou as relações pessoais: “Ficam horas no MSN”, como diria Maria Lúcia Dahl. E realmente ficamos. As redes sociais se tornaram tão comuns que são um bem (ou mal?) necessário. No meu caso: pensei inúmeras vezes em apagar a minha conta no Facebook, mas como? Faço trabalhos acadêmicos, combino horários, troco informações, marco encontros.

Meu capítulo preferido sem duvidas é: “Sexo, drogas e rave”. Zuenir trabalha muito bem com esses conceitos, deixando claro suas diferenças entre 2008 e 1968. Gosto principalmente das análises que ele faz sobre o sexo nos dias de hoje, me fez entender muito do porque agimos assim: sim, somos uma geração que tem medo de fazer sexo e porque? Por causa da AIDS. Soa até engraçado quando analisam o “ficar” da nossa geração. “Eles se beijam, beijam e não fazem nada” – ou seja, não chegam nos finalmente.

A AIDS (a concepção, o medo, o terror à doença) veio para limitar essas ideia de amor livre. Sexo só se for seguro, com camisinha. Na década de 1980 não se entendia muito sobre a doença (aliás, acho mesmo que evoluímos pouco, mas pelo menos nos livramos daquela ideia de: câncer gay). O beijo, como explica Zuenir era apenas a preliminar para o contato carnal.

Outro momento interessante do livro é a descrição que ele faz das raves, das comparações com o Festival de Woodstock, das músicas e principalmente dos participantes da festa com pirulitos na boca. Alguns chupam pirulito por causa das drogas, para não trincar os dentes. Outros, chupam porque gostam de bancar a ideia, de fingir. Em falar em drogas, essa foi uma das heranças malditas de 1968, das suas relações com a criminalidade e das suas divergências em relação a liberação ou não.

Bom…. e as listas? Bacana demais, ele faz uma separação do que acabou e do que não acabou com 1968. O que não acabou? Nelson Rodrigues, Pilula Anticoncepcional, capitalismo, maconha, sonho, MPB…. O que terminou? Comunismo, Transar sem camisinha, cabelo comprido, palavrão. O palavrão ele mesmo classifica: “não sumiu mas saiu de moda”.

A melhor entrevista, sem dúvidas é com José Dirceu, que vive reafirmando a sua inocência. Em 2008 havia ainda uma especulação sobre o mensalão, nada como o que vivemos hoje: o julgamento. Na verdade é muito bom ver a perspectivas dos personagens e de como estão agora: Caetano Veloso, Heloisa Buarque de Hollanda, César Benjamim, etc…

O ano que não terminou

Uma colega me emprestou “1968, O ano que não terminou” de Zuenir Ventura, obra clássica moderna, indicada para qualquer estudante de jornalismo (e para qualquer um que se interesse pela história política e cultural do Brasil). Devorei o livro em dois dias… Zuenir tem um poder narrativo muito profundo, que envolve o leitor (e que exige agilidade), apesar da clareza na exposição das ideias.

A história que começa na famosa “festa na casa da Helô” e envolve figuras públicas e populares que através de muita luta, representaram um expoente para a democracia.

Toda essa narrativa se somou ao documentário que assisti ontem no Belas Artes: Tropicália, dirigido por Marcelo Machado – um recorte sobre o movimento que com a conturbada situação política, enriquecia o cenário musical, os festivais e a juventude.

De fato, as duas obras possuem semelhanças esperadas. O que eu poderia dizer é que: o livro e o filme são complementares. Gosto muito da maneira em que Zuenir começa a sua obra analisando a participação da figura feminina, uma pena eu não ter o livro aqui para reproduzir uma de suas ideias: mas é mais ou menos assim: o autor explica que a efervescência política acabou com muitos casamentos. As mulheres saiam de casa pois aquela percepção de “dona do lar”, cuidando dos filhos, começara a mudar.

Em Tropicália, fica muito claro que 1967 e 1968 foram anos conturbados, mas de certa forma, bem diferentes, uma delas é o Ato Institucional nº 5 (ainda não decretado).  A televisão já cumpria um papel de massificação e de divulgação (mas não tão evidente: nem todos acreditavam em seu poder).

A morte do estudante Edson Luiz por Ventura ficou ainda mais clara para mim no documentário. Pelo que entendi, Edson Luiz foi um espécie de mártir do movimento, o cortejo para o enterro foi seguido por milhares de pessoas. (Zuenir conta um fato interessante, ele relata que durante o caminho ao cemitério as luzes se apagaram (não se sabe se foi um boicote), e mesmo assim, as pessoas não desistiram de seguir o corpo – foram pegando jornais e fazendo tochas – que queimavam muito rápido.

 

Ainda sobre o livro: a missa de sétimo dia de Edson Luiz recebe uma descrição fantástica e chama atenção para o papel dos padres. Naquele dia a polícia cercou toda a igreja, eram mais de cem cavalos. As pessoas que estavam dentro ficaram temerosas de sair. Alguns militantes (inclusive ateus) foram a missa propositalmente, conscientes da possibilidade de  um enfrentamento. Percebendo a situação, os padres saíram na frente das pessoas, fazendo uma corrente protetora e acabaram apanhando da polícia, como muitos que ali estavam.

Sobre a passeata dos cem mil, também há um detalhe interessante: o que me chamou atenção foi a forma em que a população acabou por abraçar a causa. As pessoas jogavam objetos das sacadas das janelas para atingir os policiais.

O documentário é lindo, mais linda ainda: Gal Costa. Sabe, adoro aquela mulher, aquela voz. A minha amiga que estava comigo disse baixinho (ela é demais não é?, concordei sem nem um pingo de dúvidas). Ainda muito novinha, conta como foi a apresentação em 1968 da música “Divino Maravilhoso”, alguns aplaudiam, outros vaiavam. Ela contou que durante a apresentação um homem gritava: Fora! Fora! E ela cantava ainda mais forte, cantava para ele… e ele percebeu, se sentou: “aí, não teve jeito”.  Maria Bethênia linda, poderosa, jovem… em uma apresentação agressiva de “Carará” e os Mutantes, Rita Lee Jones, simpática como sempre e doce.

Documentário incrível, livro igualmente incrível… super indico. 🙂