A professora de piano

Comentei aqui no La Amora sobre “O Clube do filme”, livro escrito por David Gilmour. A história foi baseada na vida do próprio autor e conta como ele deixou seu filho de quinze anos (que não gostava de estudar) abandonar o colégio. Em troca, Gilmour exigia que seu filho assistisse semanalmente clássicos do cinema. Em um certo momento da narrativa, o autor afirma que existem filmes tão especiais que não importa o quanto são revistos, eles sempre serão marcantes em qualquer período da vida.

Se existe um filme que marcou a minha vida, seu nome é ‘A Professora de Piano, do Michael Haneke. Pode parecer estranho, porque a historia é pesada e envolve uma dolorosa trama de compulsão sexual. O assisti aos 15 anos, ainda no período do colégio. Fiquei em choque. Nunca tinha assistido nada daquilo, nada tão perturbador. Outro dia me encontrei com duas amigas da escola e elas diziam que na época eu não parava de falar no filme. Foi com ele que conheci Isabelle Huppert e foi com ele que conheci Haneke, uma longa história de amor – que dura até hoje.

ImagemProduzido em 2000, o filme conta a história de Erika Kohut, uma mulher de quarenta anos, que mora com a mãe, não bebe, não fuma, não usa roupas chamativas, é conservadora e muito séria. Em grande parte de seu tempo, Erika ministra aulas de piano no Conservatório de Viena. O que há de errado com ela? Quando não está em casa ou dando aula, Erika passa seu tempo frequentando cines pornôs, peep-shows e gosta de se autoflagelar.

Um dia Erika começa a dar aulas a Walter Klemmer (Benoît Magimel), um jovem bonito e bem humorado que chama sua atenção e logo se apaixona por ela. Os dois começam a se relacionar, mas Erika perde as estribeiras e propõe jogos sexuais perversos que deixam Walter indeciso e confuso.

Quando o prazer se transforma em sofrimento

La-Pianiste-7771Antes de ser um filme sobre masoquismo ou repressão sexual, “A Professora de Piano” é um retrato dramático sobre uma relação sufocante entre mãe e filha e ilustra perfeitamente a importância da figura materna (e também paterna, é claro) no desenvolvimento psíquico e social humano. Erika possui amor e ódio pela mãe e isso fica claro logo nas primeiras cenas. Em certo momento do filme, a mãe da pianista controla seu salário e determina com o quê ela pode gastá-lo. Erika começa a puxar os cabelos da mãe e só depois se dá conta do que fez, arrepende-se e em lágrimas, pede desculpa. Não é difícil relacionar o filme de Haneke a Sonata de Outono, dirigido por Bergman em 1978. No filme, Ingrid Bergman interpreta Charlote, uma pianista famosa com sérios problemas de relacionamento com as filhas: Eva (Liv Ullmann) e Helena (Lena Nyman). Especialmente com Eva, com quem alimenta um doentio jogo de disputa, de arrogância – de amor e ódio.

Uma das cenas mais chocantes em ‘A professora de piano se passa no momento em que Erika, no auge da sua loucura e sofrimento, deita-se com a mãe e tenta transar com ela. Poucos espectadores reparam nesse detalhe, mas a cena se passa logo depois que Erika imagesdescobre o falecimento do pai. Há muitas interpretações para a cena, mas a que me pareceu mais interessante é a ideia de que Erika, naquele momento, queria assumir o papel da figura paterna, transar com a mãe e voltar para o único lugar onde se sentiu segura: o útero materno.

Quando Erika conhece Walter ela se depara com algo absolutamente novo: a oportunidade de ser livre, a possibilidade de revelar seus segredos mais profundos. Desde o início da trama é possível perceber que seus desejos sexuais  a corroem, a tornam presidiária. Essa situação é muito semelhante ao que é ilustrado em ‘A Ninfomaníaca de Lars Von Trier, que conta a história de Joe, uma mulher viciada em sexo. Assim como Joe, Erika é insaciável, mas ao invés de ter prazer, ela sofre. – Leia o texto escrito por Mario e Diana Corso, uma análise do filme Ninfomaníaca que discute a diferença entre erotismo e pornografia, vale a pena!

83210925_oOutro momento fundamental da trama é quando Walter vai até a casa de Erika e lê, em voz alta, a carta que ela o enviou onde descreve em minúcias o que quer que Walter faça: “Bata no meu rosto, bata forte. E mesmo se eu gritar por ajuda, não pare”. Erika, de joelhos, mostra seus brinquedos sexuais escondidos debaixo da cama: ela se revela, não há mais nada para esconder. É uma ruptura, Erika agora esta sozinha. Ao mesmo tempo, ela passa a bomba para Walter: a partir daí ele sabe o seu segredo, é hora de decidir se irá aceitá-lo ou não. Aliás, será que Erika realmente deseja por aquilo?

A alma de Erika está em Elfriede Jelinek e em  Isabelle Huppert

O filme foi baseado no romance da escritora austríaca Elfriede Jelinek, publicado em 1983 e vencedor do premio Nobel de literatura. O livro chegou no Brasil um pouco tarde, apenas em 2011. Polêmico. Foi recebido com estranheza pelo público e pela crítica, Jelinek ficou anos sem falar sobre a sua obra. De acordo com o texto escrito por Silvia Velloso Rocha e publicado no Globo, há várias interpretações políticas sobre ‘A Pianista que perpassam o feminismo, a xenofobia e o preconceito de classes.

Elfriede Jelinek
Elfriede Jelinek

Em relação ao filme existem diversos aspectos técnicos que chamam atenção, não é atoa que ele tenha se tornado o grande vencedor no Festival de Cannes em 2001, repleto de detalhes, com uma trilha sonora sensacional e atuações brilhantes. Li, em várias críticas, que o filme é  ‘lento demais. Vamos lembrar que essa não é uma produção americana, não há pressa nem uma explosão de clímax.

Um momento genial no filme se passa quando Haneke filma o rosto de Huppert, em close, nessa cena Erika vê Walter ensinando outra garota a tocar piano: ela está possessa, morta de ciúmes, mas não deixa o sentimento se esvair, continua lá, fixa, imóvel, fria. É exatamente nesses detalhes que o filme de Haneke se torna incrível, aliás, essa é uma de suas marcas. Haneke respeita os pequenos momentos, ele não tem pressa. Huppert corresponde muito bem a expectativa, sua interpretação não é exagerada e ainda assim conseguimos sentir todo o drama do personagem, incrível o que ela faz, incrível como ela se constrói.

Em ‘A professora de Piano, Annie Girardot também rouba a cena quando aparece. Difícil definir a sensação que ela passa em tela, aquela figura pequena, já idosa, dócil e ao mesmo tempo, odiável. Girardot e Huppert, as duas possuem uma química invejável, atuam com naturalidade, ali são realmente mãe e filha.

One thought on “A professora de piano

  1. Esse filme também me causou impressões arrebatadoras. A professora é uma personagem riquíssima, humaníssima. Primorosa obra cinematográfica.

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