Sinédoque, Nova York

synecdoche new yorkOntem de madrugada me peguei chorando por um filme sem pé nem cabeça. Hoje de manhã fiz a mesmíssima coisa. Como disse num post anterior, desde que vi “A Estranha vida de Timothy Green” senti uma vontade incontrolável de assistir os filmes da Dianne Wiest. “Sinédoque, Nova York” entrou na lista. Já tinha visto ao trailer e já li inúmeras críticas. Porém o filme foi uma surpresa boa, boa até demais. Me atrevo a dizer que é um dos melhores filmes que eu já vi na vida. Pensei muito sobre o que escreveria sobre ele. Não há uma receita pronta, uma sinopse simples e fechada. Não há uma interpretação exata, uma formula. No grupo de cinema que participo, disseram que Charlie Kaufman fez um filme que te dá sensações diferentes a cada vez que for revisto. Se você o assistir daqui há dois anos, terá uma ideia diferente da mensagem final.

Kaufman é conhecido pelos seus roteiros absurdos e viajados como “Adaptação” e “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Mas esse é o primeiro em que trabalha como diretor. Não fica atrás dos outros. Existe uma polêmica muito grande sobre o longa: no mesmo ano, por exemplo, ganhou o prêmio de melhor e de pior filme. Alguns dizem que é inexpressivo, exagerado. Outros (dos quais eu faço parte), dizem que é uma obra prima. Acontece que o filme tem um forte tom fatalista e Kaufman não economiza nas metáforas (tanto dramáticas, quanto plásticas e ideológicas). Além disso, o roteiro não é linear (na trama se passam quarenta anos e você quase não percebe).  Esse “no-continuum” deixou muitos espectadores perdidos por aí. Eu fui um deles. Me perdi e me encontrei diversas vezes enquanto assistia.

Quero muito falar sobre as impressões que tive sobre o filme, mas antes de tudo, tenho que admitir uma gafe. Quando vi o título, pensei que Sinédoque se referia a uma cidade ou a um estado. Após uma rápida pesquisa, descobri que sinédoque (ou synecdoche, em inglês) é uma figura de linguagem muito parecida com a metonímia. É quando a parte refere-se ao todo. Um exemplo seria: “eu não tenho um teto para dormir”, o teto refere-se à casa. Talvez a sinédoque do filme trata-se justamente da peça de teatro que o personagem principal passa a vida tentando concluir. Talvez a palavra nos impulsione a refletir que aquele mundo ficcional criado pelo personagem é a sinédoque de NY, ou do mundo, ou da vida. Pode ser isso. Pode não ser nada disso.

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Sinédoque, Nova York conta a história de Caden (Philip Seymour Hoffman ) um dramaturgo hipocondríaco casado com a pintora Adele(Catherine Keener) com quem tem uma filha de quatro anos, Olive. Desde o inicio da trama temos indícios de que o casamento não vai bem. Adele aparenta um aspecto cansado e desinteressado diante aos problemas do marido. O cenário (uma casa pequena e escura), ajuda a acentuar o clima de desconforto dos personagens. No dia da estreia da peça de Caden, Adele diz que precisa ficar em casa para terminar suas pinturas. Quando ele chega em casa, entusiasmado com o sucesso de crítica, encontra a mulher e a amiga, Maria, em pleno êxtase após usarem drogas. Os dois visitam uma terapeuta e em uma de suas confissões, Adele afirma que queria que o marido morresse, para que assim pudesse recomeçar a vida,sem se sentir culpada.

Caden é uma figura simpática e é muito claro a sua predisposição em tentar compreender a esposa. No entanto, Adele, totalmente angustiada, decide viajar por uma semana para a Alemanha, levando junto a amiga Maria e a pequena Olive. Inicia-se na trama uma narrativa desconexa. As doenças de Caden começam a sobressair em sua pele, o tempo parece não ser mais o mesmo. Em um dos ensaios da peça, Caden recebe uma “cantada” de Hazel (Samantha Morton), a garota da bilheteria. Apesar das investidas, Caden afirma que é um homem casado e que sua mulher está há uma semana na Alemanha. Ela por sua vez, responde: “preciso lhe comprar um calendário já que ela está na Alemanha há um ano”.

synecdoche_new_york12Caden tenta inúmeras vezes falar com a mulher. Em uma dessas, por telefone, Adele o chama de “Ellen” e por fim, afirma que ficou famosa. Ele então recebe uma inesperada notícia: ganhou um grande prêmio que irá financiar sua próxima obra, não importa o quanto for gasto. Caden encontra um enorme galpão, onde reproduz Nova York e contrata milhares de atores para encenar a peça. Como ele mesmo diz, a peça será sobre morte, sobre a vida, sobre os encontros e sobre os sentimentos. Quanto mais vai produzindo, mais vai sendo imergido por uma tristeza inigualável.

Com um impecável trabalho metalinguístico, Caden contrata atores para encenar figuras do seu cotidiano. Atrás de uma perfeição inatingível, o dramaturgo perde anos de sua vida, tentando montar uma peça que provavelmente não será encenada. Para cada personagem, ele escreve todos os dias, um bilhetinho, onde determina o que deve ser feito. Essa precisão detalhada, confunde-se com seu cotidiano perturbado e infeliz. Ele anda, anda, mas não consegue sair do lugar. Nesse meio tempo, Caden casa-se com Claire (Michelle Williams), uma das atrizes da peça. Desolada, Hazel (a garota da bilheteria) decide abandonar o projeto e se casar com outro homem. O tempo passa, Caden tem outra filha, mas não consegue deixar de se perturbar sobre o paradeiro de Olive.

Caden aguarda o atendimento médico no hospital e folheando umasynecdoche revista, vê uma foto da filha Olive (agora com onze anos) com os braços e grande parte do corpo tatuado de enormes flores vermelhas. Desolado, Caden vai à Alemanha para entender o que está acontecendo com a filha e consegue descobrir qual é o apartamento da ex-mulher.  Ele bate na porta, mas ninguém o atende, até que uma senhora (já muito velhinha) pergunta se ele se chama Helen. Caden responde que sim. A mulher então lhe entrega a chave e diz que Adele pediu que ele (ou ela?) fizesse toda a limpeza.  Caden passa a frequentar a casa e sempre encontra as mesmas condições: o chuveiro ligado, lençóis desarrumados e um vaso sanitário para limpar. Ele também encontra cartas de Adele direcionadas a Helen, onde ela vai lhe contando sobre a vida.

Ao mesmo tempo, o dramaturgo tenta continuar com o seu trabalho e todos os dias vai ao galpão para organizar os ensaios. Desolada, sua atual mulher: Lucy resolve abandoná-lo e passa a namorar com outro homem (um ator que conheceu quando decidiu largar a peça do marido). Ironicamente, Hazel (a garota da bilheteria) que também se casou, teve filhos e se distanciou de Caden, pede para voltar a trabalhar com ele, já que está desempregada. Nesse meio tempo, Caden encontra Olive, sua filha. Olive está morrendo, as tatuagens (feitas por Maria) provocaram sérias infecções em seu corpo. Em uma cena dramática, Olive pede que Caden lhe peça desculpas por tê-la abandonado. Ele diz que nunca a abandonou, quando na verdade, sua mãe, fugiu com Maria para a Alemanha. Ainda assim, Olive insiste que Caden repita a frase: “Me desculpe por abandonar você para manter uma relação homossexual com Eric”. Olive morre e não perdoa o pai.

Hazel passa a atuar como a secretária de Caden. Ela o ajuda a contratar um ator para interpretá-lo e dentre outros personagens, também o ajuda a encontrar uma atriz para interpretar Helen (a mulher da limpeza). Mas o tempo está visivelmente passando para o produtor e para os atores. Mesmo assim, Caden não sabe o que fazer com a peça. Muitos atores morrem, outros abandonam o espetáculo. A própria Hazel acaba falecendo pouco tempo depois, intoxicada pela fumaça da casa onde morava. Caden está definhando, já está velho, cansado, sem cabelos e sem saúde. A atriz que interpreta Helen então sugere: vemos trocar de lugar: eu interpreto Caden e vou dirigindo você, enquanto você interpreta Helen.

Metáforas:

Todo o filme, como disse anteriormente é muito subjetivo. As metáforas, portanto, estão sujeitas a diversas interpretações e pontos de vista. A mais interessante delas é a casa que pega fogo. Ao que tudo indica, Kaufman queria evidenciar que sempre sofremos as consequências dos nossos atos, todas as nossas escolhas condicionam o nosso futuro. Quando Hazel decide morar em uma casa que pega fogo ela sabe que pode morrer intoxicada (e é justamente o que acontece). A metáfora também pode estar ligada ao discurso do padre:” Há um milhão de pequenos textos… anexados a cada escolha que você faz. Você pode destruir sua vida, cada vez que você escolher”

Outro belo momento acontece quando Caden vê a caixa que deu de presente para Olive no lixo e como não consegue lacrimejar, usa um colírio para tentar ilustrar sua dor. Kaufman ironiza a artificialidade do cotidiano, a banalidade com que tratamos nossas dores e decepções mais profundas. Aliás, me lembrei de outra cena interessante: Quando Caden visita Olive (que está morrendo no hospital) ela o obriga a dizer que a abandonou para viver um caso homossexual com um homem chamado ‘Erick’. No final do filme, vemos a empregada Ellen com o marido e dizer que ‘Erick’ a odeia.

Frases Marcantes:

 – Mas enquanto está vivo, você espera em vão, desperdiçando anos por um telefonema ou uma carta ou um olhar de alguém ou alguma coisa para fazer tudo certo. E isso nunca vem… ou parece vir mas não vem realmente. Então você passa seu tempo em vago arrependimento… ou vaga esperança que alguma coisa boa virá adiante. Algo para fazer você se sentir conectado. Algo para fazer você se sentir inteiro. Algo para fazer você se sentir amado. E a verdade é… eu sinto tanta raiva! E a verdade é… eu sinto tanta porra de tristeza! E a verdade é… eu tenho me sentido tão magoado por muito tempo. E por muito tempo eu venho fingindo que estou bem apenas para seguir adiante, apenas para… Eu não sei por quê. Talvez porquê ninguém queira ouvir sobre meu sofrimento… porquê eles tenham os seus próprios. Foda-se todo mundo. Amém.”

– “O que esteve antes com você, um excitante e misterioso futuro está agora atrás de você. Vivido, entendido, decepcionante. Você percebeu que não era especial. Você tem lutado em sua existência e agora está deslizando silenciosamente para fora dela. Esta é a experiência de cada um. De cada um. Os detalhes dificilmente importam. Cada um é cada um. Assim, você é Adele, Olive, Hazel, Claire. Você é Ellen. Toda a miserável tristeza dela é sua. Toda a solidão dela. O cabelo cinza, como palha. As mãos dela, feridas e vermelhas. São suas. É tempo de você entender isso. (Ande). Como as pessoas que adoram você e param de lhe adorar. Como se morressem, como se seguissem em frente… Como se você as tirasse, como você tirou sua beleza, sua juventude. Como se o mundo esquecesse de você, como você identificasse sua transitoriedade. Como se você começasse a perder suas características, uma por uma. Como se aprendesse que não há ninguém olhando você, e nunca houve. Você pensa apenas em dirigir, não vindo de algum lugar, não chegando em algum lugar: apenas dirigir. Contando o tempo. Agora você está aqui. São 7:43. Agora você está aqui. São 7:44. Agora você está… chegando. ‘

-“Talvez um novo titulo.’Doenças infecciosas em bovinos’. O título significa muitas coisas.Você verá,significa muito.” / A Obscura Lua, Iluminando um Obscuro Mundo”

As esganadas

e a relva, Fernando Botero
Mulher nua sobre a relva, Fernando Botero
Dentro de cada mulher gorda
há uma mulher magra suplicando para sair.
 Fora de cada mulher gorda
Há uma mulher mais gorda ainda
Suplicando para entrar.
(Jô Soares)

 

Passeando pela Leitura ontem, encontrei o livro “As esganadas” do Jô Soares em preço promocional e não resisti. Levei para casa e li, em menos de um dia. Hoje de manhã, conversando com uma amiga da faculdade, dizia que se eu fosse uma escritora, era exatamente esse tipo de narrativa que gostaria de construir. Jô Soares consegue ser simples direto e divertido. Ele ainda mistura personagens reais e fictícios em um cenário riquíssimo (com um gostinho delicioso de nostalgia e saudosismo.)

‘As esganadas” é uma obra escrita em terceira pessoa, que se passa no Rio de Janeiro na década de 30, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. A trama concentra-se no caso das esganadas, mulheres jovens, bonitas que são brutalmente assassinadas. Todas tem algo em comum: são gordas. Outra coisa: todas elas morreram esganadas com comidas e seus corpos são encontrados sem os olhos. O perigoso assassino usa como isca, requintes da culinária portuguesa, irresistíveis aos olhos (e aos estômagos) das jovens senhoras.

Logo no início, o autor nos revela quem é o assassino. Trata-se de Caronte (nome que tem referência ao barqueiro do Auto da Barca do Inferno, cuja função é atravessar as almas dos mortos). Caronte é um homem alto, pálido e muito magro. Ele herdou dos pais a funerária mais famosa da América do Sul, a Esfinge. Sua mãe, Odília Barroso era uma mulher enorme (com quase cento e quarenta quilos) e tinha muito medo de ver o filho engordar. Por isso o obrigava a seguir uma dieta restrita de qualquer tipo de doces ou pratos gordurosos, sem levar em consideração que o filho tinha puxado o metabolismo do pai (e poderia comer de tudo, sem preocupar-se em engordar). Em seu aniversário de dez anos, a mãe, em vez de bolo, pôs na sua frente um prato com meio mamão enfeitado com velas. Num ataque de fúria e ódio, Caronte mata Odília.

Caronte mata inúmeras mulheres brutalmente, mas há dois assassinatos que me chamam a atenção. O primeiro é o da freira Irmã Maria Auxiliadora.  Disfarçado de frade, Caronte disse a irmã que estava disposto a ouvir suas confissões. Ela lhe diz que precisava confessar todos os dias porque sempre comete o mesmo pecado: o da gula. Ele então sai do confessionário e afirma que recebeu de um emissário do Vaticano uma informação do papa: de que a gula deixará de ser um pecado. Em sua felicidade e inocência, a Irmã acredita no falso frade e aceita sua penitência: “a irmã deve ingerir a causa das suas faltas até não poder mais, como se devorasse o mal que lhe consome as entranhas”. Ajoelhada, a freira começa a comer a toda velocidade os pasteis de Santa Clara que o assassino lhe trouxe. Enquanto isso, Caronte fala um falso (e engraçado) latim como estivesse a exorcizando “Exitus Gula Demoninum!” A irmã comendo em um ritimo frenético começa a  tossir, mas não para de comer. Caronte então, pega um punhado de pasteis e lhe enfia goela abaixo. A freira morre esganada.

Outro assassinato que adorei foi o da Greta Sübeschlitz, afilhada do almirante Wilhelm Canaris, chefe da Abwehr. A gorda alemã pertencia a uma rede de espiões que a Abwehr pretendia montar no Brasil. Foi atraída pelo furgão de Caronte que trazia nas prateleiras amostras de salsichas recheadas, morreu engasgada com as próprias tripas. Seu corpo foi encontrado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, justamente no dia em que encenavam uma peça de Wagner em homenagem ao embaixador alemão Karl Ritter. O corpo nu de Greta foi enrolado nas cortinas do teatro, seu cadáver sem olhos balançava na extremidade da corda, enquanto seus cabelos estavam enrolados em salsichas.

A trama também conta com quatro personagens que se envolvem para resolver o caso. Tobias Esteves era um detetive em Portugal mas foi afastado do cargo depois que envolveu-se (com a ajuda de Fernando Pessoa) em um falso suicídio. O jovem (baixo e roliço) veio para o Rio de Janeiro para abrir uma franquia de doces e faz grande sucesso. Porém sua paixão sempre foi desvendar crimes. Sabendo do caso das esganadas, ele resolve se oferecer para ajudar o delegado Mello Noronha. O delegado, por sua vez, aceita a oferta e junto ao seu outro ajudante, Valdir Calixto (um homem atrapalhado e muito, muito engraçado) saem às ruas para resolver o caso. No meio da trama, surge Diana, a jornalista da revista O Cruzeiro, que não larga a sua câmera Leica

Bom, depois de ver o tamanho desse texto, dá pra perceber o quanto fiquei entusiasmada com o livro. Vá por mim, é muito divertido e descompromissado. Permitam-me reproduzir uma passagem que eu mais gosto:

Capa-de-As-Esganadas-do-Jo-Soares-vertical-original-200x300“Existe um preconceito velado contra a obesidade. Na verdade, dificilmente os homens o sentem. Podem ser gordos inteligentes ou ricos ou oferecem tantos outros atrativos. Quem sofre o problema com maior intensidade são as mulheres. As mulheres gordas. O leitor pode se escandalizar com o uso da palavra gorda. Os eufemismos mais comuns são: cheinha, forte, grande e, o mais usado, gordinha. Geralmente acham que a gorda (odeio a palavra obesa) não tem força de vontade. Nem caráter. Nem vergonha na cara. A gorda é um pária, o excesso do peso, um divisor de águas. O próprio adjetivo é um palavrão. Ninguém se importa com o sofrimento ou com a humilhação da gorda. Acham que ela é gorda porque quer. Observem o olhar triste das moças gordas varrendo as vitrines da moda. Os figurinos são para as magras. Alguns vendedores ainda informam sem se alterar:” Aqui é só pra pessoas normais, madame”. E a gorda se afasta engolindo o ultraje. Restam-lhe as lojas especializadas ou as costureiras do bairro. Para mim, anormal é o tratamento do vendedor. A obesidade é democrática, não faz diferença de classe. Há gordas ricas e gordas pobres. Todas sentem a mesma reprovação silenciosa da sociedade. Existem gordas belas, mas, se a beleza é notada, há sempre um apêndice ao comentário: o rosto é lindo, pena que seja gorda.”

Gabrielle

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Gabrielle é um puta filme, daqueles que consegue te tirar o fôlego.  Foi através dele que conheci Pascal Gregory: paixão a primeira vista. Na época eu estava com uma paranoia em relação à Isabelle Huppert e assistia aos seus filmes sem parar. Li muitas críticas negativas sobre o longa, diziam que a  inversão da câmera para BW nos momentos subjetivos do personagem principal tornavam a narrativa muito lenta.  A meu ver, o dispositivo usado por Patrice Chéreau foi um dos diferencias da trama.

Gregory interpreta Jean Harvey, um homem da alta sociedade francesa casado com Gabrielle. Para ele, a esposa é a síntese da perfeição, da pureza. Através de suas descrições iniciais temos a impressão de um casamento sem problemas. Gabrielle não é só o grande amor de Jean, mas também sua propriedade (logo no início do filme ele se refere a ela como o seu objeto mais valioso). Os dois sempre comparecem a jantares elegantes e aparentam se divertir muito. A casa também é habitada por diversos empregados, que acompanham a falsa felicidade do casal quase como voyeurs. São observadores silenciosos, que ficam a espreita.

Em comemoração aos dez anos de casamento, Jean planeja um belíssimo jantar para a mulher e os amigos. Quando chega em casa, encontra uma carta deixada por Gabrielle onde ela diz que decidiu abandoná-lo.  Na carta, Gabrielle usa palavras ríspidas e inimagináveis para um homem orgulhoso como Jean. Ele, por outro lado vai à loucura, é tomado por uma fúria grandiosa (grita, quebra os copos e as taças) mas perde-se em uma confusão de dúvida e sentimentos: O que fazer? Ela vai voltar? Devo perdoá-la? (O espectador acompanha todo o desespero acentuado pela narração em off.)

Gabrielle

Depois de ataque de raiva, Jean senta-se no sofá, abandonado a própria sorte. Inesperadamente, Gabrielle retorna a casa. Com os olhos cheios de lágrimas e quase silenciosa, deixa claro que a tentativa de fugir com outro homem não deu certo. A linha precursora do filme não é sobre o abandono de Gabrielle, nem o porque ela deixou Jean e sim: o seu retorno. É o seu retorno que provoca todo o diálogo sufocante entre os protagonistas. É a sua volta que provoca todo o embate sobre um casamento sufocante.

Isabelle Huppert se transforma. Após o retorno da personagem, a atriz dá vida a uma Gabrielle rancorosa, fragilizada e martirizada por um casamento infeliz. Nesse filme ela realiza um trabalho corporal belíssimo. Prostra-se sobre a cadeira, totalmente curvada. Os olhos vermelhos condizem com a voz quase inaudível. Infelizmente, não consigo encontrar o meu DVD para reproduzir um dos diálogos. Vi esse filme em 2007, mas até hoje me lembro perfeitamente de uma fala da personagem. Jean a pergunta se um dia houve amor naquele relacionamento, Gabrielle responde que sempre teve nojo do marido e que a ideia de ter o esperma dele dentro do seu corpo a fazia vomitar.

Depois das discussões, onde Jean perde a cabeça várias vezes, não há mais nada. Acabou-se o desejo, acabou-se o respeito. Tudo se foi, inclusive o casamento.  Mas seu orgulho é tão forte, que ele faz de Gabrielle sua prisioneira. Passa a torturá-la e humilhá-la publicamente. Ainda resta no seu eu o desejo de impor-se, seja como homem, como dono da casa ou como um marido traído. Como subordinada, Gabrielle se rende, deita-se sobre a cama expondo sua dor e sua fraqueza.

Filme belísisimo!! Confira o trailer:

PRÊMIOS

– César de Melhor Figurino e Design de Produção em 2006. – Indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza 2005.

FICHA TÉCNICA

Diretor: Patrice Chéreau
Elenco: Isabelle Huppert, Pascal Greggory, Claudia Coli, Thierry Hancisse, Chantal Neuwirth, Thierry Fortineau.
Produção: Patrice Chéreau
Roteiro: Patrice Chéreau, Anne-Louise Trividic
Fotografia: Eric Gautier
Trilha Sonora: Fabio Vacchi
Duração: 90 min.
Ano: 2005
País: Alemanha/ França/ Itália
Gênero: Drama
Cor: Colorido

O velho e o Moço

(Los Hermanos)

Deixo tudo assim
Não me importo em ver a idade em mim,
Ouço o que convém
Eu gosto é do gasto.

Sei do incômodo e ela tem razão
Quando vem dizer, que eu preciso sim
De todo o cuidado

E se eu fosse o primeiro a voltar
Pra mudar o que eu fiz,
Quem então agora eu seria?

Ah, tanto faz
Que o que não foi não é
Eu sei que ainda vou voltar…
Mas eu, quem será?

Deixo tudo assim,
Não me acanho em ver
Vaidade em mim
Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.

Sei do escândalo
E eles têm razão
Quando vêm dizer
Que eu não sei medir
Nem tempo e nem medo

E se eu for
O primeiro a prever
E poder desistir
Do que for dar errado?

Ahhh
Ora, se não sou eu
Quem mais vai decidir
O que é bom pra mim?
Dispenso a previsão!

Ah, se o que eu sou
É também o que eu escolhi ser
Aceito a condição

Vou levando assim
Que o acaso é amigo
Do meu coração
Quando fala comigo,
Quando eu sei ouvir

Setembro

Não sei por que, mas nunca fui muito fã dos filmes de Woody Allen. Dois deles em especial me pareceram muito bons. São justamente os que foram classificados pelos críticos como filmes trágicos, produções que vão em contraponto ao costume de Allen conhecido por realizar comédias românticas e satíricas.

O primeiro é “A outra”, filme de 1988 estrelado por Mia Farrow e Gena Rowlands. O segundo, “Setembro” de 1987. Desde que assisti “A estranha vida de Timothy Green” senti uma vontade imensa de rever os filmes com a Dianne Wiest e por isso, não tive como fugir de Woody Allen. Comprei doze de seus filmes sendo que cinco deles são do diretor.

Dianne Wiest , Mia Farrow

Comecei ontem por “Setembro”. Ironicamente, o filme que me encantou pela proposta cenográfica e pelos diálogos é um dos mais rejeitados e esquecidos. Setembro traz Mia Farrow como Lane, uma mulher emocionalmente fragilizada que não consegue se livrar das marcas dolorosas do passado. Lane sofre um colapso emocional e decide se mudar para a casa onde passou a maior parte da infância.

Lá ela conhece e começa a se relacionar com Peter (Sam Waterston), um escritor em crise. Toda a história se passa dentro da casa da mãe de Lane que também é ambientada por Stephanie (Dianne Wiest), melhor amiga de Lane, Howard (Denholm Elliott) um velho professor aposentado, Diane (Elaine Stritch) mãe de Lane e Lloyd (Jack Warde), seu namorado.

Gostei do filme porque é melancólico, mas com um tom realista.  Os diálogos são tão teatrais quanto literários e a previsibilidade não é, de forma alguma, um ponto negativo. Allen trabalha bem os conflitos humanos e representa a realidade crua, sem floreamentos. É interessante como ele cria uma teia de relacionamento entre os personagens que quase transborda pela tela.  Lane está tão emocionalmente frágil quanto às outras pessoas daquela casa, o problema é que ela se esvai enquanto eles se reprimem.

Há três vertentes importantes no filme, a primeira é o relacionamento entre Lane e Diane. Depois de abandonar o marido, Diane começou a se relacionar com um “bandido”. O homem era um alcoólatra e constantemente batia nela. Após presenciar toda aquela situação doentia que envolvia a mãe, Lane (aos quatorze anos) decide matá-lo. Desde então, sua vida não foi a mesma.

Todo o sentimento de culpa é ainda agravado por uma sensação constante: Lane chegou aos cinquenta anos e não teve uma vida de sucesso. Diante desse turbilhão de emoções, a presença da mãe a incomoda cada vez mais. Diane, por outro lado, parece não se importar tanto com a dor da filha. Seu maior aborrecimento é a velhice, sente-se como uma jovem de 21 anos aprisionada no corpo de uma idosa.

Setembro

A segunda é a relação entre Peter e Stephie. Peter manteve um relacionamento com Lane, deixando-a completamente apaixonada. Mas a chegada de Stephie muda a situação. Peter se encanta por Stephie e passa a assediá-la. Ela, por outro lado, é uma mulher casada e com filhos e se esquiva de Peter o tempo todo, principalmente porque Lane, sua melhor amiga, se apaixonou por ele.

Achei belíssima a forma em que Stephie foi se entregando a Peter. Após uma discussão acalorada com o marido pelo telefone, Peter a procura e ela veemente se nega a sair com ele, até que de repente, fecha a porta e o beija.

Desde então, os dois passam a se encontrar escondido. Peter propõe que fujam juntos para Paris.  Apesar de toda paixão, Stephie sabe que não consegue abandonar os filhos e o marido. Quando os dois são descobertos por Lane, Stephie confessa que sabia do interesse de Peter e que o alimentava. Ela ficou encantada por sua inteligência e queria se sentir desejada.

O problema é que Stephie se apaixonou de verdade e ficou atraída pela enorme fragilidade do escritor. Peter, por outro lado, também confessa que só namorou Lane porque estava inseguro, precisava de alguém que o estimulasse a escrever o livro. Os três acabam submersos por uma destrutiva teia de paixão e manipulação.Dianne wiest, setembro

A terceira vertente é o sentimento não correspondido que Howard, o professor aposentado, nutre por Lane. Howard se apaixonou cegamente por ela, mas tinha medo de se declarar porque não queria fragilizá-la ainda mais. Mas Lane não sente nada, simplesmente nada. Ele chega a perguntar se a idade a incomoda já que é mais velho do que ela. Lane explica que não é isso, o problema é que está apaixonada por outra pessoa: Peter.

Toda a ação acontece tendo como pano de fundo muita dor, desejo, decepção e medo. A decisão de Lane de vender a casa faz daquele momento o único e o último entre aquelas pessoas. Mas apesar de todo o drama, de toda angústia que sentem, não há como parar de viver. Como Stephie diria: Setembro está chegando e é preciso seguir em frente, manter-se ocupada te fará esquecer os problemas.

Frank e o Robô

Na juventude, Frank foi um ladrão responsável por inúmeros golpes. Porém, castigado pela velhice é obrigado pelo filho a conviver com um robô que o alimenta, limpa a casa, controla o horário dos remédios e lhe faz companhia. Em princípio essa relação “homem x máquina” o incomoda muito. Até que Frank aprende a gostar da situação e se aproveita do ajudante para voltar à ativa. Frank ensina ao robô pequenos truques e cria um projeto: roubar um dos livros mais valiosos da biblioteca, Dom Quixote. A biblioteca, por sinal, está passando por uma reforma: todos os livros serão trocados por arquivos digitais. Lá há uma companhia que Frank adora a bibliotecária: Jennifer e por isso, a visita constantemente.

Frank e o Robo

Quando soube que Susan Sarandon participava do filme “Frank e o Robô” fiquei um pouco chateada. A proposta da sinopse não me chamava atenção de maneira alguma, nem o pôster, nem o trailer. Fui traída pela imagem (assim como outros espectadores dos quais acompanhei os comentários em sites de cinema). Há uma passagem no livro que estou lendo que pode, muito melhor do que eu, explicar essa situação.

Em “A linguagem cinematográfica”, Marcel Martin ressalva uma das vertentes de pensamento de Lucien Wahl: Podemos então constatar que uma boa quantidade de filmes perfeitamente eficazes no plano da linguagem mostra-se nula do ponto de vida estético, do ponto de vista do ser fílmico: não têm existência artística. “Há filmes”, escreve Lucien Wahl, “cujo roteiro e razoável, cuja direção é impecável, cujos atores são talentosos, e não valem nada. Não vemos o que lhes falta, mas sabemos que é o principal” O que lhes falta é aquilo que alguns chamam de alma ou graça, é o que eu denomino ser. Não são as imagens que fazem um filme, escreveu Abgel Gance, mas a alma das imagens.

No caso de Frank e o Robô, dirigido por Jake Schreier essa percepção de “alma fílmica” em contraponto a própria imagem está muito presente. Apesar das ressalvas no filme, que nem sempre estão de acordo com a afirmação de Lucien Wahl, a imagem de Frank Langella, um senhor de idade acompanhado por um robô pequenino é pouco convincente.  Mas o roteiro, as mensagens e a brilhante interpretação de um forte time de atores (Liv Tyler, James Marsden e o próprio Frank Langella) são quesitos importantes para atribuir ao filme esse bom desempenho: são dispositivos que completam a alma da obra.

Frank e o RoboEm suma, o robô é importante para o argumento, mas não é essencial. “Frank e o Robô” vai além (muito além) da relação do homem e máquina. A proposta principal, ainda que subjetiva é a reflexão da relação do homem com o próprio homem. A velhice e o esquecimento de Frank é um dos motivos para que a família compre um ajudante. Mas por quê ninguém se dispõe a ficar com ele? Talvez, porque todo mundo está ocupado demais com a própria vida. Jake Schreier então nos faz pensar mais uma vez em outra consequência da velhice (e do nosso futuro incerto): a solidão.

O filme engana-nos mais uma vez quando nos leva a acreditar na lucidez de Frank. Somos convidados, como cúmplices, a duvidar do dono da biblioteca e torcer para que Frank consiga não só roubar o Dom Quixote mas também as suas joias. Ao redor da situação, acompanhamos o drama dos filhos que precisam seguir com as próprias vidas e ao mesmo tempo, cuidar do pai.

Alías, o fim do filme é uma doce surpresa.

Frank e o Robô